domingo, 2 de maio de 2010

Preso na própria armadilha


















Por Jorge Fernandes Isah

Estou a ler “Confissões” de Agostinho de Hipona [1], e, vez ou outra, me deparo com algumas afirmações contraditórias do autor. Com isso não quero desqualificar a obra, nem sou louco para tanto. O livro é mais do que bom, é ótimo! Porém contaminado pela idéia extrabíblica do livre-arbítrio; ou a tentativa de defender Deus dos ataques inimigos, daqueles que querem desacreditá-lo por causa da existência do mal; ou ainda pelos que insistem em manter seus “esquemas” conceituais e doutrinários a todo custo; ele diz: "Pois eu não sabia que o mal é apenas privação do bem, privação esta que chega ao nada absoluto"[2].

Esta última afirmação não me convenceu. O mal não pode ser o nada absoluto, nem o nada absoluto resultar num mal absoluto. O "nada" nada pode criar, nem dele resultar efeito algum, sendo causa de qualquer coisa, mesmo que um “nada” maior ou menor do que nada. Ele é o que é: nada; e mais nada.

Da mesma forma, dizer que o mal é a privação do bem, implica em que ele, assim como o bem, pode ser autocriado e existir fortuitamente. Acontece que se o bem é proveniente de Deus, o mal é proveniente do quê? Da ausência de Deus? Mas estaria Deus ausente de algum lugar? Poderia haver algum espaço onde Ele não esteja presente? Onde o Seu conhecimento não alcance? Haveria algo possível de existir contrário à mente divina? Uma espécie de "energia" ou "força" que subsista alheia a Ele? Pode haver algum recôndito na criação onde Deus deixou-o à própria sorte, abandonando a pessoalidade com que não somente criou mas sustenta todas as coisas, para a impessoalidade de negligenciá-la ou omitir-se [deísmo]? É possível haver algo que se sustente por vontade própria?

A Bíblia afirma que tudo, absolutamente tudo, é sustentado pelo poder da palavra, a qual é Cristo. Por Ele tudo foi criado, existe e subsiste [Cl 1.15-17; Hb 11.3]. Portanto, parece-me ilógica essa assertiva, a menos que ela tenha um cunho simbólico, figurado, seja uma metáfora; mas para que isso acontecesse, não se poderia usar os termos “mal” e “bem” como Agostinho os usa. Os termos utilizados são os que conhecemos como definidos semanticamente.

Os ímpios foram criados para o mal, a fim de exercê-lo e praticá-lo, e por isso, e por desempenhá-lo com especial veneração, serão irremediavelmente condenados [Pv 16.4]. Se foram criados com esse propósito, o mal, que eles praticam, também. Logo Deus criou-os objetiva e determinadamente, cumprindo os Seus santos e perfeitos desígnios.

Dizer que o mal é a ausência absoluta do bem, e de que isso seja o nada absoluto, representa dizer que ele não existe, nem é praticado, nem produz os efeitos pelos quais o Senhor o criou. Seria apenas uma ilusão, o produto da mente, como algumas religiões garantem? Ou, de alguma forma, Deus foi impedido ou incapaz de manter o bem na esfera em que o mal atua? O que levaria à perigosa e maligna idéia de que Deus pode ter sido pego de surpresa, ou não ser o Todo-Poderoso como a Escritura assevera. Em muitos aspectos, vejo sérios problemas à manutenção da doutrina da soberania, onisciência, onipotência, perfeição e santidade divinas quando o mal parece ser colocado em uma categoria “extra” Deus. Por mais que os argumentos sejam bem construídos, agradáveis, e revestidos de certa nobreza metafísica, ainda assim, se não estiverem em harmonia com o texto bíblico, são reprováveis.

Agostinho, em sua doxologia e amor a Deus [há de se entender que o nosso amor ainda é imperfeito, e somente será perfeito no glorioso dia do Senhor], costura uma doutrina que fica aquém da Escritura, com o nítido objetivo de salvaguardar Deus da criação do mal e, para isso, utilizou-se de um raciocínio falacioso. Entenda, não estou a anular nem inabilitar a sua obra. Reconheço-o como instrumento divino na construção dos fundamentos teológicos cristãos, em sua sistematização, na proclamação do Evangelho e defesa da fé. Por ele, Deus operou na Igreja revelando verdades que estavam enevoadas ou esquecidas; porém, em relação ao mal, a despeito da inspiração e sublimidade dos versos, não passa de incompreensão e interpretação deturpada da Bíblia.

Quer dizer que estou a rejeitar a sua obra? Longe disso. Ao contrário. Quero apenas garantir que em meio a todos os seus acertos, o erro não seja confundido com eles; não seja de alguma forma diluído na verdade, passando-se por ela.

À medida que a leitura avança, percebemos que a vida de Agostinho está tão intrinsecamente ligada a Deus que não é possível discorrer sobre qualquer ponto sem reportá-la ao senhorio divino.

Por exemplo, quanto à natureza caída do homem, que se inclina, almeja, deseja e se deleita na prática do mal, do pecado; em relação à depravação do homem e sua responsabilidade perante Deus, concordo em gênero e número com o que diz, estando plenamente em conformidade com a revelação especial.

Para falar do Senhor como o Ser infinito e eterno, ele diz; “'Tu, porém, és o mesmo eternamente', e todas as coisas de amanhã e do futuro, de ontem e do passado, hoje as farás, hoje as fizeste!"[3], ecoando o ensino do Salmo 102.27 e Hebreus 1.12.

Ou ainda: "Alguém pode ser autor de sua própria criação?"[4]; ao referir-se à criatura, mostrando a impossibilidade de qualquer coisa existir aparte de Deus, o qual sendo não-criado é o único autor de tudo o que foi criado.

São fragmentos que espelham posições bíblicas, e das quais nenhum ortodoxo rejeitará.

Mas, voltando à questão do bem e do mal, parece-me que a idéia agostiniana se resume à presença e ausência de Deus, da ação de Deus e da ação do "não-Deus" para que o bem e o mal existam, respectivamente. Contudo, ele mesmo afirma que não há universo possível para contê-lo [Deus], mostrando a sua infinitude. Então, como o mal surgiu a partir da não-presença do Deus infinito na criação finita?

Ao distinguir entre tudo e o pecado, como este não estando incluído na categoria "tudo" [o que considero um grave erro doutrinário e lógico], Agostinho mostra-se contraditório ao dizer: "Senhor, meu Deus, ordenador e criador de tudo o que existe na natureza, com exceção do pecado, de que és apenas regularizador"[5].

Ao assumir que Deus não criou o pecado [e por conseguinte o mal], sendo apenas seu regulador, coordenador, estaria agindo sobre quais leis? As Suas ou de outrem? E como ficaria a citação de que Deus criou "tudo o que existe na natureza", mas o "tudo" pode significar alguma coisa rotulada de "não-tudo", mesmo que seja o pecado? Implicando, na verdade, que Deus não é o único Criador perfeito e santo, havendo a possibilidade de outro agente criativo? Estaríamos diante da idéia de um "não-Deus" em alguma parte da criação?

De várias formas, Agostinho tenta, inexplicavelmente, não-explicar o explicável, como um caçador preso em sua própria armadilha.
Nota: 1-"Confissões", de Santo Agostinho - Editora Paulus
2-Idem - pg 75
3- " - pg 26-27
4- " - pg 26
5- " - pg 32

Fonte: KÁLAMOS

2 comentários:

  1. É um alto nível de discussão teológica, visto que a maioria dos crentes medianos não discernem nem mesmo as heresias em moda na atualidade e não conseguem desmascara-las comparando-as com a verdade do Evangelho.
    Concordo em parte que Agostinho parte para uma pseudo defesa de Deus (como se isso fosse possível, plausível ou necessário). Ele tenta costurar um rasgado (pelo menos no entendimento geral do contexto) mas o remendo se torna pior que o dito "rasgado". E como diria o bom mineirinho, "deixa quieto, não mexe mais nisso, senão fica cada vez pior".
    Voltando ao assunto "do mal" ou sua aparição ou formação, vejo como sendo responsabilidade da relativa "liberdade" que lúcifer tinha, e desconheço (ou rejeito) qualquer idéia que Deus tenha planejado ou conduzido esses acontecimentos, e uma vez tendo sido consumados, Ele não poderia simplesmente coloca-los debaixo do tapete (mesmo que do tamanho do universo) devido a Sua própria Pessoa e atributos (pelo menos aqueles que podemos definir).

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  2. Graça e paz Gilson,
    o Jorge é um pensador nato e um bom argumentador também, ele sabe fazer uma análise crítica que poucas pessoas fazem. Ele é o tipo de leitor que se impressiona com a argumentação do autor, mas não se deixa levar por ela, no caso em questão, ele analisa o texto de Agostinho, concordando e discordando dentro de uma análise lógica e teológica. Mas são poucas pessoas, como você mesmo disse, que tem a capacidade de entender e analisar teologicamente um texto rico como esse, nós temos visto isto por meio de tantos argumentos rasos por aí e as pessoas aceitam como se fosse algo extremamente profundo. Que tenhamos esse mesmo censo crítico também para não nos deixarmos levar por qualquer argumento, ainda que bem elaborado.
    Fique na Paz!
    Pr. Silas

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