quarta-feira, 14 de abril de 2010

Bíblia e Predestinação [3] - A Liberdade do Homem


Por Helder Nozima

Não é possível entender a predestinação sem antes fazer uma análise sobre quem é o Deus da Bíblia e como Ele governa o mundo. No primeiro post, lemos sobre o Deus Soberano e como Ele governa de modo soberano a Sua criação. No segundo post, vimos que Deus usa esse governo para atingir um objetivo supremo: a Sua glória por meio da exaltação de Cristo. Mostrei também que a predestinação é um passo lógico e necessário para o sucesso deste objetivo.

No entanto, muitos leitores devem estar se perguntando: se Deus decreta e determina cada passo da História, os seres humanos são livres? Será que os homens não são mesmo simples marionetes nas mãos de Deus? Afinal, como a Bíblia mostra a liberdade do homem? O que é liberdade?

Mas, antes de respondermos a todas estas perguntas, precisamos definir o que queremos dizer com "liberdade". Por exemplo, obviamente o ser humano não é livre para fazer o que desejar, porque ele não tem esse poder. Posso desejar voar como o Superman ou soltar raios nas mãos como um personagem de anime, mas isso está além de minhas capacidades. Apenas Deus possui liberdade absoluta, sendo capaz de fazer tudo aquilo que Ele desejar.

O ser humano também não consegue vencer certos determinismos impostos a ele em sua vida. Até o momento, nenhum ser humano é livre, por exemplo, para retirar de seu código genético os genes que causam a doença de Huntington, um mal incurável. Podemos lutar, por exemplo, para que o Brasil adote um novo regime político, como o parlamentarismo, mas estamos sujeitos à vontade da maioria e ao imperativo das leis do país. Podemos fazer cirurgias plásticas e exercícios físicos, mas há limites que não conseguimos ultrapassar para fazer alterações estéticas. Esses fatos mostram que a liberdade do ser humano é muito mais limitada do que imaginamos ou pensamos.

E isso se reflete na discussão bíblica sobre a liberdade. Sobre este assunto, há dois grandes grupos. Os não-calvinistas dizem que o ser humano possui o livre-arbítrio, ou seja, a capacidade do ser humano de fazer escolhas que possam ir contra a sua própria natureza. Já os calvinistas entendem que o ser humano possui a livre agência, a capacidade de escolher fazer ou não uma determinada ação, mas ele nunca poderá fazer uma escolha que contrarie a sua natureza.

Obviamente, o livre-arbítrio pressupõe um grau de liberdade maior que o da livre agência. A questão agora é saber qual o ponto de vista bíblico sobre o assunto.

A livre agência é uma realidade
Não é preciso um esforço muito grande para ver que a livre agência é uma realidade bíblica. Seja na hora de fazer o bem ou de fazer o mal, a Bíblia mostra seres humanos escolhendo, voluntariamente, servir a Deus ou pecar.

Um exemplo é o último discurso de Josué, onde, após fazer uma recapitulação das obras de Deus no deserto, ele pede que o povo decida servir a Deus ou aos ídolos:
Agora, pois, temei ao SENHOR e servi-o com integridade e com fidelidade; deitai fora os deuses aos quais serviram vossos pais dalém do Eufrates e no Egito e servi ao SENHOR. Porém, se vos parece mal servir ao SENHOR, escolhei, hoje, a quem sirvais: se aos deuses a quem serviram vossos pais que estavam dalém do Eufrates ou aos deuses dos amorreus em cuja terra habitais. Eu e minha casa serviremos ao SENHOR. (Josué 24:14-15)
A resposta do povo está nos versículos 21 e 22:
Então, disse o povo a Josué: Não; antes, serviremos ao SENHOR. Josué disse ao povo: Sois testemunhas contra vós mesmos de que escolhestes o SENHOR para o servir. E disseram: Nós o somos. (Josué 24:21-22)
Por outro lado, a Bíblia deixa claro que ninguém pode culpar a Deus como sendo o responsável por seu próprio pecado. Ao contrário, o ensino bíblico é o de que pecamos por causa do mal que existe dentro de nossos corações:
Ninguém, ao ser tentado, diga: Sou tentado por Deus; porque Deus não pode ser tentado pelo mal e ele mesmo a ninguém tenta. Ao contrário, cada um é tentado pela sua própria cobiça, quando esta o atrai e seduz. Então, a cobiça, depois de haver concebido, dá à luz o pecado; e o pecado, uma vez consumado, gera a morte. (Tiago 1:13-15)
Não há, pois, discussão ou dúvida de que a Bíblia ensina a livre agência. Mas, para respondermos se ela ensina ou não o livre-arbítrio, é preciso ver primeiro qual é a natureza do homem.

A natureza humana antes da Queda
Quando Deus criou o homem, o Senhor definiu que ele seria a sua imagem e semelhança:
Também disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; tenha ele domínio sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos, sobre toda a terra e sobre todos os répteis que rastejam pela terra. Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou. (Gênesis 1:26-27)
O testemunho bíblico é o de que, em seu estado original, o homem era sim, bom:
Viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom. Houve tarde e manhã, o sexto dia. (Gênesis 1:31)

Eis o que tão-somente achei: que Deus fez o homem reto, mas ele se meteu em muitas astúcias. (Eclesiastes 7:29)
Mas Adão e Eva, embora tivessem uma natureza considerada boa pelo Senhor, acabaram escolhendo pecar contra Ele. A ordem divina no Jardim do Éden era a de que o primeiro casal não deveria comer o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal:
E o SENHOR Deus lhe deu esta ordem: De toda árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás; porque, no dia em que dela comeres, certamente morrerás. (Gênesis 2:17).
Apesar da advertência, Adão e Eva acabaram comendo o fruto proibido:
Vendo a mulher que a árvore era boa para se comer, agradável aos olhos e árvore desejável para dar entendimento, tomou-lhe do fruto e comeu e deu também ao marido, e ele comeu. (Gênesis 2:6)
O pecado de Adão e Eva mostra que, originalmente, o ser humano tinha sim livre-arbítrio. Embora eles fossem criados muito bons, preferiram se meter em astúcias e escolheram uma ação maligna, que era contrária à sua natureza.

A natureza humana após a Queda
Só que, ao fazerem isso, Adão e Eva acabaram mudando a natureza dos seres humanos. Antes, eles eram apenas bons. Agora, além de conhecerem o bem, tornaram-se conhecedores do mal. Mais do que isso, o pecado e a morte entraram na vida deles...e de todos os seus descendentes:
Portanto, assim como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado, a morte, assim também a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram. (Romanos 5:12)
O pecado tornou o homem espiritualmente morto. A vontade da carne e do pensamento humanos passou a ser contrária à vontade de Deus e merecedora de Sua ira:
Ele vos deu vida, estando vós mortos nos vossos delitos e pecados, nos quais andastes outrora, segundo as inclinações da nossa carne, fazendo a vontade da carne e dos pensamentos; e éramos, por natureza, filhos da ira, como também os demais. (Efésios 2:1-3)
Repare aqui que várias coisas mudaram:

1) Antes da Queda, os seres humanos eram vivos e bons;
2) Após a Queda, eles são apontados como mortos e pecadores;
3) Enquanto mortos, os homens andam de acordo com o curso deste mundo, a vontade de Satanás (o príncipe da potestade do ar) e as inclinações da carne;
4) Neste estado, a humanidade é considerada, por natureza, filha da ira.

Lembre-se de que o morto não pode fazer muitas coisas que os vivos fazem, como respirar, comer...e escolher! E, neste estado, torna-se impossível ao ser humano submeter-se à Lei de Deus:
Porque os que se inclinam para a carne cogitam das coisas da carne; mas o que se inclinam para o Espírito, das coisas do Espírito. Porque o pendor da carne dá para a morte, mas o do Espírito, para a vida e paz. Por isso, o pendor da carne é inimizade contra Deus, pois não está sujeito à lei de Deus, nem mesmo pode estar. Portanto, os que estão na carne não podem agradar a Deus.” (Romanos 8:5-8)
E aqui já é possível chegar a uma conclusão. Antes da Queda, Adão e Eva tinham o livre-arbítrio e a capacidade de fazer uma escolha contrária à sua boa natureza. Mas, uma vez tendo escolhido fazer o mal, a natureza humana tornou-se maligna e incapaz de fazer o bem. Com o pecado, o homem perdeu o seu livre-arbítrio. Esse fato é comprovado em Romanos 3:10-12, que é uma citação dos salmos 14 e 53:
Não há justo, nem um sequer, não há quem entenda, não há quem busque a Deus; todos se extraviaram, à uma se fizeram inúteis; não há quem faça o bem, não há nem um sequer (Romanos 3:10-12)
O texto não deixa margem a dúvidas:

- Ninguém é justo;
- Ninguém entende o que Deus quer;
- Ninguém busca a Deus;
- Todos se tornaram inúteis;
- Ninguém faz o bem.

O primeiro ponto do calvinismo: a depravação total
E aqui chegamos na doutrina que é apontada como o primeiro ponto do calvinismo: a depravação total.
Depravação total é a doutrina que indica que a corrupção é inerente ao homem e afeta todas as partes de sua natureza, todas as faculdades e poderes da alma e do corpo; e que não há no pecador nenhum bem espiritual aos olhos de Deus, mas somente perversão. (Adaptado da Teologia Sistemática, de Louis Berkhof)
Isso não significa que todos os homens entregam-se a todo tipo de pecado. Mas, significa sim, que o homem nada tem em si que agrade a Deus. Suas melhores atitudes são reprováveis aos olhos divinos:
Mas todos nós somos como o imundo, e todas as nossas justiças, como trapo da imundícia; todos nós murchamos cmo a folha, e as nossas iniqüidades, como um vento, nos arrebatam. (Isaías 64:6)
Mas, e as boas obras que católicos, espíritas, judeus e até mesmo ateus fazem? Será que Deus não aprova esses atos de caridade e generosidade?

A dura resposta é: não. O pecado mancha até mesmo as "boas obras" humanas. Sempre há algum defeito: a intenção de se salvar por meio da caridade, o egoísmo, a vontade de aparecer...mas, mesmo que nada disso esteja presente, ainda assim há um pecado: o de se fazer uma boa ação sem que ela seja para a glória de Deus:
Portanto, quer comais, quer bebais ou façais outra coisa qualquer, fazei tudo para a glória de Deus. (1 Coríntios 10:31)
Tudo o que fazemos, se não for feito para glorificar ao Senhor, é pecado. É a quebra de 1 Coríntios 10:31. E é somente por meio de Jesus que podemos glorificar ao Senhor.

Mas este é assunto de um próximo post. Por enquanto, basta que entendamos que o ser humano não tem mais o livre-arbítrio, e sim a livre agência. E que, por causa do pecado, somos incapazes, de nós mesmos, de buscarmos ao Senhor e fazermos o bem.

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