quinta-feira, 3 de março de 2011

O mau uso do caráter


Por Dan Doriani

Apesar da clareza do ensinamento bíblico sobre caráter, alguns teólogos ficam inquietos. Eles pensam primeiro no perigo de que os discípulos se gabarão de suas realizações, tirando de Deus a glória e escorregando para a autoconfiança. Porém, o maior perigo não está no egoísmo, mas na confiança na carne, no desvio de Deus para a força própria. Os luteranos em especial admoestam que "nossa própria justiça pessoal" é tão perigosa à alma quanto o vício, pois ameaça perverter o evangelho da justificação pela fé. O próprio conceito insinua que os seres humanos podem alcançar mérito diante de Deus. Lutero diz que o êxodo dos redimidos não é do vício para a virtude, mas "da virtude para a graça de Cristo". O "inimigo mais vital da justiça não é o pecador sem Deus, mas o justo que pensa em termos de progresso ou movimento". Muito se esforçam para alcançar uma vida virtuosa, mas a virtude deles nunca se preocupa em glorificar a Deus. Essa virtude natural não possui mérito verdadeiro. Ela é o vício esplêndido do jovem rico que sempre obedecia a Deus, mas jamais o amou. Essa virtude traz o mal, porque infla o orgulho humano e a "confiança insana".

Essa crítica observa que a confiança na própria virtude transmite um falso sentido de paz. Uma ênfase em passos pequenos e disciplinados em direção à virtude ameaça obscurecer o salto infinitamente maior do pecado humano para a misericórdia de Deus. É muito melhor conhecer o nosso pecado e ainda encontrar paz fundamentada na graça de Deus. Como disse um poeta-teólogo:

Oro incessantemente pela conversão do irmão do filho pródigo. Sempre em meu ouvido soa o terrível aviso:

"Este despertoude sua vida de pecado.Quando será que o outrodespertaráda sua virtude?"

Outro crítico da virtude observa: "Como era previsível que um interesse pela virtude surgisse agora, numa cultura consumida por teorias de autodesenvolvimento e auto-absorção narcisista". A virtude pode se desin¬tegrar num bem moral que possuímos e admiramos em nós mesmos. Se alguém age com generosidade porque isso se encaixa na imagem que ele tem de si mesmo como pessoa generosa, em benefício de quem ele estará agindo com generosidade?45 Assim, a virtude devora a si mesma quando a sua atenção está voltada para si e longe daquele a quem trata generosamen¬te. Ela sucumbe num programa de saúde física da alma: "Um pouco de sacrifício talvez lhe faça bem". No pior dos casos, ela salva o profissional que faz um trabalho pro bono para manter uma boa imagem ou o clube de bebidas que realiza um serviço público para aliviar a consciência.

No entanto, devemos hesitar em condenar totalmente o desejo de virtude.46 Suponhamos que uma mulher avarenta queira pensar em si como generosa. Inicialmente, a sua generosidade não tem espontaneidade; ela tem de perguntar a si mesma: "O que é que faço para agir generosamente?" Se ela der a resposta correia a essa pergunta e age baseada nela, não uma, mas muitas vezes, ela pode aprender a ver mais prontamente o caminho da generosidade, adquirindo o hábito de agir com generosidade, até tornar-se, finalmente, uma pessoa generosa. Nesse caso, a linha entre a hipocrisia e a aspiração se torna inesperadamente obscura. C. S. Lewis reconheceu isso na sua autobiografia. Quando ainda não era cristão, impressionado pela virtude de um amigo do exército que lutara na Primeira Guerra Mundial, Lewis começou primeiro a admirar, e depois a fingir virtude na sua presença. Comenta Lewis:

Se isso for hipocrisia, devo concluir que a hipocrisia pode fazer bem a um homem. Ter vergonha do que se está prestes a dizer, fingir que algo que você queria dizer seriamente era apenas uma brincadeira - essa é a parte ignóbil. Mas é melhor do que não ter vergonha alguma. A distinção entre fingir que se é melhor do que é e começar a ser melhor na verdade é mais sutil do que podem conceber os patrulheiros morais.48Se Lewis estiver certo, então até o baixo-ventre da virtude tem o seu valor. A virtude pode se enfeitar para o espelho, mas talvez seja melhor enfeitar-se do que ser indiferente em relação à própria aparência. É claro que um interesse pela aparência da virtude, ou em sentir-se melhor sobre si será fatal se terminar ali. Porém, o interesse pela aparência da virtude pode ser o primeiro sinal tangível de que Deus está operando, conven¬cendo do pecado, levando ao espírito um descontentamento com suas trevas e despertando o desejo da verdadeira retidão.

Fonte: Ortopraxia

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