terça-feira, 27 de julho de 2010

Palmada na lei


Por Eliane Brum

Ao propor a proibição da palmada, o Estado infantiliza os pais

Tento me mover pela vida a partir das dúvidas. Mesmo quando acho que tenho uma razoável certeza sobre algum tema, me pergunto várias vezes: “será?”. E guardo uma parte de mim sempre aberta para mudar de ideia diante de algum fato novo ou argumento bem fundamentado. É o caso da lei da palmada, que me parece desde sempre um total disparate. Ao constatar que o projeto de lei enviado pelo presidente Lula ao Congresso em 14 de julho é apoiado e defendido em entrevistas e artigos por pessoas cuja inteligência e atuação pública tenho grande respeito, me forcei a um questionamento ainda maior. Será que palmada é crime e eu não estou percebendo algo importante?

O projeto, que ficou conhecido como “lei da palmada”, se propõe a alterar o artigo 18 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Nele, fica proibido o uso de castigos corporais de qualquer tipo na educação dos filhos. O castigo corporal é definido como “ação de natureza disciplinar ou punitiva com o uso de força física que resulte em dor ou lesão à criança ou adolescente”. Li, pesquisei, estudei e continuo achando um total disparate. Não encontro um único argumento que me convença de uma lei proibindo palmadas.

Antes de seguir, quero deixar muito claro que, obviamente, espancamento é crime. Seja dos pais ou de quem for. Palmada não. E nada me convence de que precisamos de mais uma lei, já que a legislação existente pune o espancamento e demais agressões físicas. Nada tampouco me convence de que o Estado deve interferir neste nível na vida privada, na maneira como cada um educa seus filhos. Não por uma postura liberal, mas por algo bem mais sério que vou abordar mais adiante.

Um dos argumentos em defesa da nova lei é de que as pessoas não saberiam a diferença entre uma palmada e um espancamento. Acredito que a maioria das pessoas sabe muito bem a diferença entre dar um tapa na bunda de uma criança e espancar uma criança. Não vale como estatística, mas nunca conheci ninguém que não soubesse, exceto pessoas com distúrbios muito graves, que também não sabiam a diferença entre quase tudo. Quem espanca não acha que está dando uma palmada. Tem certeza de que espanca e quer espancar.

Outro argumento é de que a suposta violência começaria com uma palmada e evoluiria para um espancamento. Não me parece que temos provas de que isso seja um fato verídico. É verdade que temos, infelizmente, um número elevado de crianças espancadas no país – no caso de crianças espancadas, queimadas e agredidas de todas as formas qualquer número acima de zero é elevado e vergonhoso e seus autores devem ser punidos com as penas previstas nas leis que já existem. Mas não é a maioria nem é uma regra evolutiva. Não vejo pais dando palmadas nos primeiros dois anos de vida e no terceiro e no quarto espancando. E no quinto e sexto matando? O espancamento de uma criança quebra tanto o consenso social que provoca horror e espanto.

Me parece muito perigoso tachar de criminosos pais que dão palmadas. Por vários motivos. O primeiro deles é a injustiça da afirmação. Crime é algo muito sério e algo com que o Estado e todos nós precisamos nos preocupar porque rompe e ameaça o tecido social, portanto a sobrevivência de todos. Não pode e não deve ser banalizado. Chamar de criminoso um pai ou uma mãe que dá uma palmada na criança na tentativa de educar é, além de um equívoco, um flagrante abuso.

Me preocupa muito, por exemplo, o fato de demorarmos a agir no caso das denúncias de espancamentos e de agressão sexual. Assim como me preocupa a falta de instrumentos de proteção efetivos para amparar as crianças violadas de todas as formas. Quem trabalha com a prevenção da violência contra crianças sabe que há escassez de assistência. Isso resulta em traumas físicos e psicológicos para as vítimas e impunidade para os agressores. Quando o Estado coloca a palmada e o espancamento no mesmo nível, como se fosse a mesma coisa, todas as lacunas de prevenção, assistência e repressão podem se tornar ainda mais largas.

Se o Estado se propõe a entrar na casa das pessoas e fiscalizar se todos os pais do Brasil estão dando ou não palmadas em seus filhos, em vez de concentrar seus recursos e esforços naquilo que é importante – a prevenção do espancamento e a punição dos espancadores, assim como dos abusadores de todo tipo – temo que o tiro possa sair pela culatra, com o perdão do clichê. Acho que na vida, seja para um governante, um legislador ou um cidadão comum, é importante ter foco.

Este tipo de debate é rico porque todos têm suas próprias experiências. E eu acredito muito na experiência. Vivemos numa época em que a tradição foi desmoralizada e a maioria corre para especialistas de todo o tipo para saber como deve agir ou pensar. Não confia nem na soma de experiências próprias e dos que acertaram e erraram antes – nem em seus próprios instintos. Uma pena, porque perdemos muito. Todos nós perdemos muito. E, talvez, mais que todos, nossas crianças.

Espancamento, ouso dizer que a maioria de nós não experimentou. Mas palmadas quase todos conhecem na pele. Eu nunca fui espancada pelos meus pais, mas recebi várias palmadas. E todas elas, na minha percepção, foram atos de amor e de educação. Eu nunca espanquei minha filha, mas dei várias palmadas nela. E também foram atos de amor e de educação.

Quando eu era criança, só conheci um colega que era espancado pela mãe. Numa ocasião, esta mulher entrou na escola onde estudávamos com um pedaço de pau e deu uma surra pública no meu amigo. Para nós aquilo foi algo totalmente apavorante. Tínhamos oito anos e não sabíamos que os pais eram capazes de tal violência. Sabíamos perfeitamente a diferença entre aquela surra sangrenta que testemunhamos e o que acontecia dentro da nossa casa quando aprontávamos alguma arte. Lembro que nos reunimos para conversar. Estávamos assustados e precisávamos explicitar e assegurar a diferença para termos certeza de que nossos pais nunca fariam algo assim. A forma que encontramos foi cada um contar como os pais procediam quando faziam algo errado. Rememorar os limites era a única maneira de nos tranquilizar diante daquela cena de horror.

O curioso é que, nervosos, cada um queria se exibir mais do que o outro. Minha mãe corre atrás de mim e me dá palmadas, a maioria dos meus colegas dizia, orgulhoso. Tinha um que se gabava de que o pai lhe dava umas cintadas na bunda. Me senti um pouco inferiorizada porque apanhava pouco. Então exagerei dizendo: “Minha mãe me dá muitas chineladas e dói bastante”. Pronto. Todos nós reafirmamos que éramos amados. Não éramos e não seríamos espancados, mas éramos amados o suficiente para que nossos pais se preocupassem de nos punir por coisas erradas que fazíamos. Confiávamos que nossos pais nunca superariam este limite. E, depois desta sessão espontânea de terapia coletiva, fomos convidar nosso machucado colega para brincar.

Passei a infância com uma inveja manifesta dos meus irmãos que um dia apanharam de cinta do meu pai. Meu pai explicou calmamente porque eles apanhariam, perguntou se tinham entendido bem as razões e as circunstâncias e começou a bater pelo meu irmão mais velho, por causa de outra regra muito clara: como ele era o mais velho, deveria dar exemplo aos mais novos. Como eu nasci muitos anos mais tarde, meu pai já tinha delegado esta tarefa à minha mãe e perdi esta parte. Seguiu mantendo uma autoridade que nos impunha tal respeito que bastava cravar em nós “aquele olhar” para pararmos a traquinagem no meio do movimento. Mas eu me sentia roubada – e desconfiava secretamente que meu pai me amava menos. Meus irmãos até hoje rolam de rir desta surra ritual de cinta nos encontros familiares – e eu não tenho nada para contar. Lembro de um dia ter me enchido de coragem e perguntado ao meu pai: “Por que eu nunca apanhei de cinta?”. Não lembro a resposta.

Quando chegou a minha vez de ser mãe, busquei as referências na minha própria educação. Minha opinião era a de que eu tinha apanhado pouco e deveria ter sido mais reprimida sob certos aspectos. Não havia a menor chance de que eu, como mãe, fosse permitir algumas petulâncias que meus pais engoliram de mim como filha. Fui uma mãe bem mais dura do que meus pais foram comigo, o que implicou em um número maior de palmadas e de regras. E, claro, me esforcei para desenvolver aquele olhar que emana da autoridade – e não do autoritarismo – no qual meu pai era mestre. Não fiquei traumatizada pelas palmadas que recebi dos meus pais – nem minha filha ficou traumatizada com as dadas por mim. Ainda ontem telefonei para ela, hoje com 28 anos, para me certificar. Não, ela definitivamente não ficou traumatizada.

Li num artigo de jornal a seguinte afirmação de uma psiquiatra: “Crianças que sofrem palmadas são induzidas a pensar que podem dar palmadas nos outros, que a violência é a maneira de resolver as coisas, e se tornam agressivas na escola”. Me parece um pensamento bastante inconsistente. Nunca achei que pudesse dar palmadas em ninguém nem permiti que outros que não fossem meus pais me dessem palmadas. Era muito claro que esta prerrogativa, a de me dar palmadas para me educar, era só dos meus pais. E que eu só as teria quando fosse mãe. Assim como era muito claro para mim e para meus irmãos que a violência não era a forma de solucionar conflitos. Possivelmente porque nós – e a maioria das crianças ao nosso redor – não decodificavam a palmada como violência. Nunca conheci nenhuma criança que saísse dando tapas nos outros porque recebia palmadas em casa. Vi, sim, especialmente em trabalhos de reportagem, crianças espancadas que se tornaram muito agressivas ou totalmente alheias. Garanto: é de outra ordem.

Outro argumento que aparece neste debate é o da desproporção. Não há comparação entre a força de um adulto e a capacidade de se defender de uma criança, entre o tamanho da mão que aplica a palmada e a mão de quem a recebe. É verdade. E não vejo como poderia ser diferente. Não compreendo como poderia existir um processo educativo que não parta de uma desproporção. Se eu tenho condições de ser mãe é justamente porque assumo a desproporção. Para me tornar mãe ou pai, eu preciso antes acreditar que tenho o que transmitir ao meu filho e tenho meios para educar. É minha esta responsabilidade. E dá um trabalho enorme – muito maior do que deixar para lá e não colocar limites, como se vê cada vez mais por aí.

É a consciência da desproporção que faz com que eu controle minha força se for dar uma palmada. E controle minha “força” também para não impor as minhas respostas e, assim, impedir meu filho de fazer sua própria busca pelo conhecimento. Com a minha orientação, sim, mas não com os meus dogmas. Ser pai ou mãe é se responsabilizar pelo seu poder, em todos os sentidos. Quando a gente se responsabiliza fica muito mais difícil se exceder em qualquer aspecto – seja físico ou psicológico.

Mas o aspecto que mais me preocupa se este projeto de lei for aprovado é o de reforçar aquele que me parece ser – este sim – um dos grandes problemas atuais: a dificuldade dos pais de educar seus filhos. Não me parece que o problema da maioria das crianças hoje seja a palmada que eventualmente recebe dos pais. Mas o fato de não receber limites de seus pais, de não ser efetivamente educada.

Boa parte dos pais me parece completamente perdida. As crianças gritam, as crianças querem porque querem, as crianças interrompem às vezes aos berros quando o pai conversa com outra pessoa, as crianças não cumprimentam ninguém nem na chegada nem na saída, fazem exigências como se o mundo e todos os adultos dentro dele existissem para servi-las, testam e testam para ver se alguém vai fazê-las parar, botar algum limite, e nada. Basta sair na rua para testemunhar cenas lamentáveis em restaurantes, shoppings, cinemas e lugares públicos protagonizadas por pequenos déspotas diante de pais infantilizados. Pais esvaziados, inseguros sobre sua capacidade de educar o filho que botaram no mundo e que parecem duvidar que têm algo a ensinar àquelas crianças. Pais sem nenhuma autoridade.

O que uma parte destes pais faz quando se torna insuportável viver com estes filhos? Leva para um especialista que diagnostica a criança como a mais nova portadora da epidemia da moda: a tal da TDAH – Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade. E dá-lhe medicamento cada vez mais cedo. Como boa parte das crianças ao redor já foi diagnosticada com a “doença” esta, ninguém acha suspeito. Imagino que, quando parte desta geração crescer, o rito de passagem vai ser apenas mudar o medicamento: aos 18 anos ganha um carro e sua primeira caixa de antidepressivos.

Pobres pais? Não! Pobres crianças que visivelmente estão cada vez mais infelizes porque ninguém nasce sabendo sobre seus limites e todo o resto. Um filho precisa que os pais sejam pais. Diante deste quadro, o que o Estado faz? Infantiliza e esvazia de autoridade ainda mais estes pais ao se meter na vida privada e dizer como eles devem educar. Ou que eles não podem tocar nos seus filhos para educar sob pena de serem tratados como criminosos ou párias. Ou, talvez o pior: tratados como maus pais.

Na escola, os professores já choram diante de crianças e adolescentes que desafiam sua combalida autoridade dizendo: “Você não pode me mandar fazer nada porque quem paga o seu salário é o meu pai”. A tradução é: portanto, eu mando em você e, portanto, não há educação possível a partir desta premissa. Se a lei da palmada for aprovada, é possível imaginar as variações dentro de casa: “Se me bater eu te denuncio para o conselho tutelar”.

Não estou fazendo aqui nesta coluna uma apologia da palmada. Há pais que educam sem bater – e conheço alguns. Há outros que educam dando palmadas quando outras tentativas se esgotam. Os que não batem não são melhores pais porque não batem – e vice-versa. Cada relação é uma relação. Cada filho é diferente do outro. E com cada filho seremos pais diferentes, porque cada um deles nos trará demandas diferentes. Quem tem mais de um filho sabe bem disso.

Não tenho dúvida de que os autores e apoiadores da lei são bem intencionados. Mas acho que se equivocaram e erraram o alvo. Uma lei como esta desautoriza os pais – e o faz numa época em que eles mesmos, por diversas razões, já desautorizam a si mesmos. Ao exercer sua autoridade de forma abusiva, o Estado esvazia de autoridade e infantiliza seus cidadãos. Isto é grave. Embora eu tenha poucos motivos para confiar neste Congresso que aí está, espero que vozes com bom senso se ergam para impedir este projeto de virar lei. Se virar, como todas as leis sem lastro na realidade, não será cumprida. E isto desmoraliza a democracia.

Eliane Brum - Jornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem. É autora de Coluna Prestes – O Avesso da Lenda (Artes e Ofícios), A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua (Globo).

Fonte: Época

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