quinta-feira, 8 de julho de 2010

O futebol e o horror


Por Hélio

O relato dos horrores que cercam as denúncias contra Bruno, goleiro do Flamengo, expõem as vísceras da situação macabra a que a sociedade brasileira chegou, em que a fuga da realidade conflita com a própria realidade que se pretende evitar, terminando por torná-la insuportável, por paradoxal que pareça. Esta fuga é um fenômeno muito mais abrangente do que a nossa vã filosofia pode imaginar, mas os detalhes macabros do assassinato de Eliza Samudio escancaram as fraturas expostas da alma brasileira. E podia ter sido diferente, já que a história de vida de Bruno é marcada pela superação, abandonado que foi pelos pais quando ainda era bebê, e criado pela avó materna num ambiente de extrema pobreza. Como muitos garotos pobres do país, viu sua tábua de salvação no futebol, chegando a goleiro do Atlético Mineiro e do Flamengo, onde conquistou o título do campeonato nacional de 2009. Obviamente, nada justifica que tenha se tornado um monstro, se é que as denúncias contra ele serão confirmadas em juízo, da mesma maneira que o passado de atriz pornô de Eliza Samudio não significa que ela merecesse ser vítima de qualquer tipo de violência. Quis o destino que os caminhos de ambos se cruzassem, provavelmente para a concretização de uma fantasia qualquer. Alguns criticam Eliza como mais uma maria-chuteira arrivista e gananciosa, como se não existissem jogadores de futebol que veem no dinheiro, no sexo e na fama uma maneira de sublimar um passado de privações. O que se seguiu, entretanto, foi um circo de horrores com detalhes tétricos de um bebê de quatro meses sendo tirado da mãe, que por sua vez é morta, esquartejada e atirada aos cães. Se tal não bastasse, o bebê é entregue ao avô paterno que, segundo noticia o G1, responde pelo estupro de uma menina de 10 anos de idade, que seria sua filha com a cunhada, enquanto ainda era casado com a irmã dela. É o espetáculo grotesco do horror sem fim da miséria humana a reinventar-se ilimitadamente.

A fuga da realidade fica mais clara quando, após sua prisão, o goleiro Bruno diz que “a copa de 2014 acabou” para ele. Ora, os problemas que ele terá que enfrentar na Justiça são infinitamente maiores do que uma não convocação para a seleção brasileira, mas Bruno é incapaz de enxergar o óbvio. Na noite passada na cela, ainda teve a ajuda de um policial a ler trechos bíblicos para ele. Sua esposa oficial seria evangélica, embora haja indícios de que, no mínimo, teria sido conivente com o crime. O futebol parece sintetizar o momento de um país que não consegue mais conviver consigo mesmo e, quando a coisa resvala na religião na tentativa de justificar o injustificável, parece que o resultado é desastroso. Guardadas as devidas proporções, ainda envolvendo a seleção brasileira, parece que Dunga e Jorginho também estavam fora da realidade na África do Sul. Talvez contaminados pelo espírito guerreiro da propaganda, combinado com o triunfalismo evangélico que tudo pode no Brasil varonil, também não conseguiram enxergar o óbvio ululante de um time fadado ao fracasso. O discurso não se sustentou no mundo real, e talvez seja esta a única (e triste) semelhança com o caso macabro do goleiro Bruno: uma incapacidade crônica de lidar com os problemas da vida real e uma tentativa inócua de torná-la mais palatável mediante um discurso fantasioso e – lamentavelmente – vazio.

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