Por J. I. Packer
O cristianismo hoje incorpora e reflete a maneira de olhar a vida do mundo, a qual pelos padrões bíblicos é mundana e excêntrica.
O prazer, concebido e buscado em termos dos bens e confortos deste mundo, é o foco central da religião da banheira quente. E revelador ver como o prazer tem sido visto em diferentes épocas da história do Cristianismo e fazer comparações entre as óticas anteriores e esta síndrome em particular. Já que o Cristianismo tanto afirma o mundo como a criação de Deus e o renuncia como corrompido pelo pecado, esperaríamos ver algumas ocasiões históricas de oscilação entre ver o prazer como bem e como mal, e isso acontece realmente. O mundo greco-romano do primeiro e subseqüentes séculos estava firmemente nas garras de uma mentalidade decadente, de busca do prazer. Logo não se admira que o Novo Testamento e os escritos dos primeiros pais gastassem mais tempo atacando prazeres pecaminosos do que celebrando prazeres piedosos, nem que essa visão fosse levada até a Idade Média, na qual o tipo monástico de renúncia ascética do mundo foi julgada a mais alta forma do Cristianismo. Mas então, por insistirem os reformadores e os puritanos na santidade da vida secular, a teologia bíblica do prazer finalmente veio à tona, e a maioria da cristandade já chegou a reconhecê-la.
Calvino expressou essa teologia com brilho e sabedoria singular. Num capítulo de suas Institutos, intitulado "Como devemos usar esta vida presente e seus auxílios", ele avisa contra os extremos, tanto da austeridade exagerada como da indulgência excessiva. Ele afirma (contra Agostinho!) que não usar para o prazer as realidades criadas que oferecem prazer é ser ingrato para com seu Criador. Ao mesmo tempo, entretanto, ele reforça a admoestação de Paulo para não se apegar às fontes do prazer (1 Co 7.29-31), visto que um dia poderemos perdê-las, e recomenda moderação — que é na prática aplicar o freio até certo ponto — ao utilizarmos os prazeres, para que nosso coração não se torne escravo deles a ponto de não podermos passar alegremente sem eles. É até irônico que Calvino, supostamente a encarnação da austeridade deprimida, fosse realmente um teólogo clássico do prazer. Não é menos irônico que os puritanos, supostamente os desmancha-prazeres profissionais (H.L. Mencken definiu o puritanismo como sendo o temor obsedante de que em algum lugar, de alguma forma, alguém pudesse sentir-se feliz), acabassem sendo aqueles que mais insistissem que "a religião nunca foi planejada para minorar os nossos prazeres". Mas o fato é esse.
Contudo, nem todos os evangélicos seguiram Calvino e os puritanos em sua integração do prazer na piedade. O avivalismo cultivou uma ênfase em espiritualidade "extramundana" tanto estreita como negativa.
As pressões seculares provaram ser fortes demais. O materialismo intimidou os cristãos aponto de se esquecerem do céu e procederem na base de que a única vida em que se deve pensar e da qual precisamos desfrutar o prazer é a vida terreal. O freudismo capturou as imaginações cristãs não menos que as pós-cristãs com seu retrato do indivíduo humano impulsionado por desejos desesperados de prazer, especialmente prazer sexual, e sujeito a ficar descosturado ou descomposto se esses apetites não forem saciados. O humanismo promoveu a auto-expressão, a auto-realização como o supremo alvo da vida. Os cristãos têm assimilado esse pensamento e até afirmado que essa é mesmo a vontade de Deus também. Hollywood e a TV têm projetado uma visão de vida de conto de fada, na qual o prazer é o pote de ouro que sempre se encontra no fim do arco-íris, contanto que seu comportamento prévio não tenha sido completamente escandaloso. Dessa mistura tenebrosa de idéias emergiu a religião da banheira quente, preocupada com o prazer pessoal em uma ou outra forma, exigindo que a piedade seja confortante, e insistindo que tudo que abranda as tensões da vida, por isso mesmo, deve ser considerado bom e santo.
Já podemos enxergar agora o que é realmente a religião da banheira quente — o Cristianismo corrompido pela paixão pelo prazer. A religião da banheira quente é o Cristianismo tentando ganhar do materialismo, do freudismo, do humanismo e de Hollywood, no jogo que eles jogam, em vez de desafiar os erros que as regras desse jogo refletem. Resumindo, o Cristianismo caiu vítima mais uma vez (porque isso já aconteceu muitas vezes antes, de diferentes modos) ao fascínio deste mundo decaído. O mundanismo — isto é, abraçar os valores do mundo, neste caso o prazer — é a fonte de onde surge a ótica distinta da religião da banheira quente. "O lugar do navio é dentro do mar", disse D.L. Moody, falando da igreja e do mundo, "mas Deus ajude o navio se o mar entrar dentro dele". Certamente foi justo o sentimento dele.
Sintomas dessa religião de banheira quente de hoje incluem a escalada vertiginosa da taxa de divórcios e segundos casamentos entre cristãos; a prática ampla de aberrações sexuais; um sobrenaturalismo superaquecido que busca sinais, maravilhas, visões, profecias e milagres; a água-com-açúcar suavizadora constante dos pregadores eletrônicos e do púlpito liberal; o sentimentalismo antiintelectual, e os "altos" de emoção cultivados deliberadamente, que são os equivalentes cristãos da maconha e da cocaína; e uma aceitação fácil, irrefletida do luxo na vida diária. Essas tendências não são salutares. Fazem a igreja se parecer com o mundo, impulsionado pelo mesmo impensado desejo por prazer temperado com magia. Por isso minam a credibilidade do evangelho da vida nova. Se é importante reverter essas tendências, uma nova estrutura referencial terá que ser estabelecida. A esta tarefa, portanto, nos remetemos agora, seguindo para onde a Escritura nos levar.
A palavra vinda de Deus que precisamos ouvir sobre este assunto foi escrita pelo apóstolo João: "Não ameis o mundo nem as coisas que há no mundo. Se alguém amar o mundo, o amor do Pai não está nele; porque tudo que há no mundo, a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida, não proce¬de do Pai, mas procede do mundo. Ora, o mundo passa, bem como a sua concupiscência; aquele, porém, que faz a vontade de Deus permanece eternamente" (1 Jo 2.15-17).
Essas palavras apaixonadas são cruciais no argumento da carta de João. Ele escreve a uma igreja remanescente, o cerne fiel que continuou leal ao seu evangelho quando um grande segmento dos membros saiu. Os separatistas haviam professado uma versão mais alta, mais moderna, mais intelectual do Cristianismo. João inicia sua carta aos remanescentes lembrando-os de que sua palavra vinha com a autoridade de uma testemunha ocular de Cristo (1.1-4) e que a investida de sua mensagem é, e sempre foi, a salvação do pecado pela purificação através do sangue de Jesus, para haver como caminhar em santidade com um Deus santo (1.5-10). Em seguida ele explica seu propósito pastoral em escrever para eles — guardá-los dos pecados dos dissidentes (arrogância, ódio e lassidão moral) e mantê-los no caminho da obediência a Deus e do amor uns aos outros que vinham seguindo fielmente (2.1-14) e em triunfo até então. Agora vem esse trecho rompante de três versículos no qual João resume a investida negativa desta carta. Amor do mundo, ele diz em outras palavras, é a causa original das deserções, como é de todas as outras faltas de amor a Deus encontradas entre cristãos professos; portanto, aconteça o que acontecer, não ame o mundo!
O que significa amar o mundo? João analisa esse amor em termos da paixão da carne (o desejo) que diz: "Eu quero..." e do orgulho (vangloria) que diz: "Eu tenho..." Aqui ele está falando do apetite irrequieto por aquilo que você não tem juntamente com gloriar-se vaidosamente daquilo que você tem (v.16). Concordo com a tradução NVI que diz nesse versículo conciso: "Pois tudo que há no mundo — a cobiça da carne, a cobiça dos olhos e a ostentação dos bens — não provém do Pai, mas do mundo." A paixão por possuir e o orgulho de possuir o que o mundo em volta oferece é o que quer dizer amar o mundo.
Com isso já podemos ver por que o amor do mundo exclui o amor do Pai (v. 15). O amor do mundo é egocêntrico, aquisitivo, arrogante, ambicioso e absorto, o que não deixa espaço para nenhum outro tipo de afeição. Quem ama o mundo presta serviço e culto a si mesmo a cada momento. É ocupação de tempo integral. E por aí vemos que qualquer pessoa cujas esperanças estão focalizadas em adquirir prazer, lucro e privilégio material é candidata a uma experiência de destituição, de perda, já que, como diz João (v. 17), o mundo não vai durar. A certeza maior da vida é que um dia nós deixaremos para trás o prazer mundano, o lucro e o privilégio. A única incerteza é se essas coisas nos deixarão antes do nosso dia de deixá-las. Os verdadeiros servos de Deus, entretanto, não têm de enfrentar tais perdas. Seu amor e seu desejo centram-se no Pai e no Filho em uma comunhão que já existe (cf. 1.3) e que nada jamais poderá interromper.
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