sábado, 27 de março de 2010

Espírito de Escravidão



Por D. Martyn Lloyd-Jones

"não recebestes o espírito de escravidão para outra vez estardes em temor" (Rm 8.15)..

O que ele quer dizer com "espírito de escravidão"? Ele está falando do perigo de ter um "espírito de servo", um espírito e uma atitude de escravo. A atitude de escravo em geral surge de uma tendência de tornar a vida cristã, ou o viver a vida cristã, numa nova lei, numa lei mais alta, superior. Estou pensando em pessoas que estão bem esclarecidas em seu relacionamento com a lei — os Dez Mandamentos, ou a lei moral — como um caminho de salvação. Viram claramente que Cristo as libertou disso, e que somente Ele poderia fazer isso; sabem que seus próprios esforços jamais as capacitaram a cumprir a lei. Entendem que Cristo nos libertou da maldição da lei; não têm qualquer dúvida quanto à sua justifi­cação. Entretanto, agora começam a olhar positivamente para a vida cristã, e de uma forma muito sutil — sem ter qualquer cons­ciência disso — tornam-na num novo tipo de lei, e como resultado caem num espírito de escravidão e de cativeiro. Pensam na vida crista como uma grande tarefa a que têm que se empenhar, e à qual devem se dedicar. Leram o Sermão do Monte e compreendem que é um retrato da vida cristã, a vida que desejam viver.


Voltam-se para outros ensinamentos do Senhor registrados nos Evangelhos, e vêem a mesma coisa. Então examinam as Epístolas, e lêem aquelas instruções minuciosas dadas pelos apóstolos, e dizem: "Essa é a vida cristã". E tendo chegado a essa conclusão, consideram-na algo que deve ser assumido e colocado em prática em suas vidas diárias. Em outras palavras, santidade se torna uma pesada tarefa para elas, e começam a planejar e organizar suas vidas e a incluir certas disciplinas que as capacitem a prosseguir. Esta atitude pode ser vista, de forma clássica, na igreja católica romana e em seus ensinos, em toda a idéia do monasticismo, que é nada mais do que uma grande expressão disto que estamos considerando.



Vemos ali homens e mulheres que, sendo confrontados pela verdade cristã, dizem: "Obviamente, a vida cristã é uma vida nobre e sublime, e se alguém vai vivê-la com sucesso, deve se dedicar integralmente a isso". Indo ainda mais longe, dizem: "Não se pode fazer isso, e ainda continuar exercendo uma profissão, ou mesmo continuar vivendo no mundo. É preciso segregar-se do mundo, abandoná-lo completa­mente". E fazem isso. Essa é a forma extrema dessa idéia de san­tidade, de que cultivar santidade e a vida espiritual é uma ocupação de tempo integral, e que é necessário devotar-se a ela exclusivamente, e ter regulamentos e outras coisas para ser capaz de vivê-la.


De acordo com o apóstolo Paulo, isto nada mais é que um espírito de escravidão. Mas não preciso dizer que isso não está confinado aos católicos romanos, nem a outros que se denominam a si mesmos de "católicos" — pode ser bem comum, e é, entre cristãos evangélicos. Podemos muito facilmente impor a nós mesmos uma nova lei. É claro que não a chamamos de lei, e se compreendês­semos que estamos nos colocando sob uma nova lei, não o faríamos; mas ainda assim há uma tendência para fazer isso. Posso prová-lo pelas várias referências feitas a isso nas epístolas do Novo Testa­mento. Vejam, por exemplo, o argumento de Paulo ao escrever aos colossenses, onde ele tem uma passagem específica que trata desta questão.


Observem como ele o expressa no fim do segundo capítulo: "Portanto ninguém vos julgue pelo comer, ou pelo beber, ou por causa dos dias de festa, ou da lua nova, ou dos sábados. Que são sombras das coisas futuras, mas o corpo é de Cristo. Ninguém vos domine a seu bel-prazer com pretexto de humildade e culto dos anjos, metendo-se em coisas que não viu; estando debalde inchado na sua carnal compreensão, e não ligado à cabeça, da qual todo o corpo, provido e organizado pelas juntas e ligaduras, vai crescendo em aumento de Deus. Se, pois, estais mortos com Cristo quanto aos rudimentos do mundo, por que vos carregam ainda de ordenanças, como se vivêsseis no mundo, tais como: não toques, não proves, não manuseies?


As quais coisas todas perecem pelo uso, segundo os preceitos e doutrinas dos homens; as quais têm, na verdade, alguma aparência de sabedoria, em devoção voluntária, humildade, e em disciplina do corpo, mas não são de valor algum senão para a satisfação da carne" (Colossenses 2:16-23). Isso nos dá uma idéia do que estava acontecendo na Igreja primitiva. Uma espécie de monasticismo estava surgindo de forma muito insidiosa. Já não é mais encontrado entre nós dessa forma particular, mas a tendência, a tentação, ainda está presente. Novamente, Paulo escrevendo a Timóteo, tem de advertí-lo contra a mesma coisa. Observem o que ele diz na Primeira Epístola a Timóteo, capítulo 4. "Mas o Espírito expressamente diz que nos últimos tempos apostarão alguns da fé, dando ouvidos a espíritos enganadores, e a doutrinas de demônios; pela hipocrisia de homens que falam mentiras, tendo cauterizada a sua própria consciência; proibindo o casamento, e ordenando a abstinência dos manjares que Deus criou para os fiéis, e para os que conhecem a verdade, a fim de usarem deles com ações de graças". Isso certamente é algo que ainda é muito comum. Lembro-me muito bem do caso de uma senhora, uma cristã evangélica, que tinha parado de comer carne. Ela acreditava poder demonstrar claramente que o cristão não devia comer carne porque o animal teve que ser morto, e isso era uma violação do espírito de amor. Essa senhora havia imposto sobre si mesma uma lei. Qual era seu obje­tivo? Era, como ela pensava, verdadeiramente viver a vida cristã. Ela levava o cristianismo muito a sério, era uma cristã evangélica, não tinha dúvidas quanto à justificação pela fé, mas inconsciente­mente estava tornando a vida cristã numa nova lei que tinha imposto sobre si mesma. Essa passagem que eu acabei de citar, sobre espíritos enganadores que proíbem o casamento e proíbem comer carne, devia ser suficiente e para mostrar o que o apóstolo queria dizer com "espírito de escravidão, para outra vez estardes em temor".

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