sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

O único caminho


Por Esli Soares
Como filho desta geração, nascido nesse caldeirão de misticismo travestido de piedade, eu vi muita coisa acontecer: o dente de ouro, o cair no espírito, a unção do riso ou do choro, os encontros... “é tremendo”. Depois descobri que isso tudo tinha acontecido 20 ou 30 anos atrás, em outros lugares do mundo, e, como aqui, pouco tempo depois, esses que foram ungidos, que receberam o poder, estavam, se não pior, do mesmo jeito que antes, e buscavam novas unções para si. Reafirmo: esses movimentos não me impressionam, se isso é do Espírito, devo admitir que o “Espírito” está atrasado.

Essas práticas “novas” – já não tão novas assim – esses costumes diferentes, esse misticismo, essa necessidade pelo novo, inusitado, essa absorção de elementos heterodoxos nas igrejas, me lembraram uma das muitas experiências vividas por Israel durante os 40 anos de peregrinação no deserto, registradas no Livro do Êxodo, no cap. 32; 1 a 6:

"Mas, vendo o povo que Moisés tardava em descer do monte, acercou-se de Arão e lhe disse: Levanta-te, faze-nos deuses que vão adiante de nós; pois, quanto a este Moisés, o homem que nos tirou do Egito, não sabemos o que lhe terá sucedido. Disse-lhes Arão: Tirai as argolas de ouro das orelhas de vossas mulheres, vossos filhos e vossas filhas e trazei-mas. Então, todo o povo tirou das orelhas as argolas e as trouxe a Arão. Este, recebendo-as das suas mãos, trabalhou o ouro com buril e fez dele um bezerro fundido. Então, disseram: São estes, ó Israel, os teus deuses, que te tiraram da terra do Egito. Arão, vendo isso, edificou um altar diante dele e, apregoando, disse: Amanhã, será festa ao SENHOR. No dia seguinte, madrugaram, e ofereceram holocaustos, e trouxeram ofertas pacíficas; e o povo assentou-se para comer e beber e levantou-se para divertir-se. "

Moises subiu ao monte Sinai e passou ali 40 dias, durante os quais Deus escreveu com o próprio dedo nas tábuas de pedra as Palavras da Aliança. Mas o que chama a atenção nessa passagem, é a volição do povo de Israel. Bastaram 40 dias, a ausência de Moisés, e o povo perverteu o coração. Esse povo se sentia abandonado, então corre atrás do sacerdote que, pressionado, cede ao pedido multidão: “faça-nos um deus que vá adiante de nós”. Sem ter coragem de dizer não, Arão pede todo ouro para trabalhar em prol desse projeto. Surpreendentemente o povo pega todo o ouro que possuía, unidos como um só e ofertam para esse deus. Um detalhe ainda mais surpreendente é que ao término da fundição do bezerro, Arão não só faz um altar na frente dele como, também, conclama festa santa ao Senhor.

É preciso compreender quem era esse povo. Eles conheciam bem a Deus. Eles viram as 10 pragas; passaram a pés secos pelo Mar Vermelho; comeram o maná e as codornizes enviados por Deus; beberam água da rocha em Refidim; em batalha, venceram aos amalequitas e no pé do Sinai, eles receberam do Próprio Deus, os 10 mandamentos. De dia, a presença do Senhor os conduzia na jornada pelo deserto com uma coluna de nuvens os protegendo do sol escaldante; à noite a proteção e direcionamento vinham da coluna de fogo que aquecia e iluminava a fria escuridão.

Esse povo tinha grandes experiências sobrenaturais com Deus. Ele era o povo escolhido, era para eles que Deus se revelava. Mas essas experiências sobrenaturais não foram acompanhadas de obediência à palavra de Deus. Talvez, é aqui que a Igreja da atualidade mais se parece com Israel. Nós também queremos mais, e este mais é quase sempre dissociado de real devoção e obediência a Deus. Assim como era para eles, nós também temos a revelação de Deus. Só que para nós, ao contrário do que muitos pensam, Deus está mais próximo. O advento de Jesus, sua morte vicária, substitutiva, nos religou a Deus. Ou seja, tudo o que Israel esperava, para nós é algo concreto, realizado. Mas não é só isso, para que a Palavra de Deus chegasse às mãos de Israel foram necessários 40 dias e as tábuas de pedra. Para nós, em contrapartida, é só abrirmos a Bíblia, bonita, pequena ou grande, de vários modelos, acessível praticamente a todos. Mas mesmo assim queremos mais.

É aí que mora o perigo. O povo sabia onde estava Moises, e parte da vontade de Deus já havia sido claramente revelada. Mas eles tinham necessidades, precisavam de um deus que os atendesse, um deus presente, “próximo”, mais simples, mais fácil. Para atender a necessidade do povo, que pedia “mostra-nos Deus”, Arão faz um bezerro de ouro. O povo não queria outro deus. Na passagem, na maioria das traduções a expressão é: “faze-nos deuses que vão adiante de nós”, mas no original hebraico o termo traduzido por deuses é Elohin, a mesma expressão usada para descrever o Criador em Gn 1;1. E o que foi traduzido como “faze-nos” pode ser facilmente entendido como “mostra-nos”. Aqui percebe-se onde o povo errou. Deus, o único, é quem dita as regras. É ele quem se revela, não adianta o povo insistir, é Deus que coordena as agendas, com um rei, é ele quem controla os encontros e audiências. Não que o povo estivesse realmente abandonado ou perdido. As narrativas anteriores mostram que os anciãos e todo povo é chamado para congregar com Deus. Mas esse mesmo povo que pergunta a Arão: “Onde está Deus?”- Amedrontado, não quer ouvir diretamente a Deus, e prefere que Moisés seja o intermediário (Ex 20;19). É assim conosco também, a igreja do nosso tempo é uma igreja que não quer ouvir a voz de Deus que fala nas Escrituras. Corremos atrás de um modo mais fácil, mais acessível, mais simples e controlável. Queremos intérpretes, mestres, ungidos que nos mostrem Deus. Erguemos nossos altares diante da imagem que fazemos ou que fazem de Deus para nós. Essa imagem não é, necessariamente, de gesso, de barro ou de ouro, mas sim qualquer simplificação, ou seja, qualquer intenção de minimizar Deus destacando uma ou outra de suas características, em detrimento da plenitude de seu próprio Ser. Buscamos o Deus que cura, ou que liberta, ou que faz prosperar. Achegamo-nos a ele e o cultuamos na expectativa de recebermos suas dádivas. É nesse momento que nos distanciamos da vontade de Deus, e, como no caso de Israel, podemos nos tornar idólatras.

Bastou apenas um pequeno desvio, um errinho simples – lembre-se aquele bezerro era tão somente a representação de IAVEH, o Deus que os tinha tirado do Egito – e o povo claramente quebrou o 2º mandamento. Talvez toda essa história, à primeira vista, não tenha muita relação com as nossas experiências. Mas, assim como Israel tropeçou e caiu na idolatria, nós também, se não prestarmos atenção, nos tornaremos idólatras e estaremos passíveis da mesma condenação. A sinceridade de Israel nessa passagem não é questionável. A idolatria deles não está em quererem outro deus, mas em fazer para si uma imagem do Deus libertador. O bezerro era a figura de um dos deuses egípcios. O que Israel fez foi misturar o que foi revelado (Ex 20) com o que era cultural. Tal mistura produziu idolatria. Não é diferente para nós. Buscamos um relacionamento com esse deus fragmentado, pequeno, controlável – eu sirvo a Deus do meu jeito, dizem – Queremos o poder de cura ou o de libertação, e queremos do nosso jeito, no nosso tempo, e forçamos uma interação com a divindade: “eu determino...”, “receba, receba...”, “Deus vai opera hoje aqui, você crê?” Não estamos dispostos a obedecer à voz do Único Deus soberano, o Deus Revelado, de quem, com reverência e santo temor, devemos nos aproximar de acordo com suas próprias orientações. Misturamos o Deus da Bíblia, com conceitos culturais, pensamentos filosóficos ou afirmações cientificistas; a “onda” é interpretar a Bíblia e o Deus da Bíblia a partir do sentimento, para isso usam até a “física quântica”. Não se engane isso é espiritismo barato, que se apropria de teorias científicas para introduzir valores e conceitos fora da Bíblia, diminuído Deus, é exaltando o homem e sua pretensa decisão ou liberdade. Cuidado, erros sutis provocam grandes desgraças, introduzir uma mentira para fazer a verdade ser mais facilmente aceita, é sacrificar a ídolos! É trazer fogo estranho ao altar! A condenação é certa, e o castigo de Deus é duro. A desobediência leva à morte, só nessa ocasião cerca de 3000 homens foram mortos por ordem de Moisés (Êxodos 32;28). Nadabe e Abiú, filhos de Arão, morreram porque fizeram o que Deus não tinha ordenado (LV 10;1 e 2). Uzá morreu junto a Arca da Aliança, pois por zelo, tentando impedi-la de cair, tocou na Arca, e isso era proibido (2 Sm 6;6 a 8).

Sinceridade não é sinônimo de verdadeira adoração, Jesus afirma que os samaritanos cultuavam a Deus no monte Gerizim (Jo 4;22), mas sem conhecimento da vontade de Deus, esse culto era tão condenável quanto a hipócrita observância das leis do templo pelos judeus. As pessoas podem estar sinceramente enganadas, e isso não as fará menos enganadas. É o conhecimento da Verdade que liberta (Jo 8;32) e não a sinceridade que nos torna aceitáveis.

Por fim, a omissão é igualmente culpada, Arão foi responsabilizado pelo desvio do povo, e só não morreu pela intercessão de Moises (Dt 9;20). Tolerar o erro, não é o mesmo que amar o irmão que erra. Somos chamados, vocacionados, capacitados pelo Senhor, com dons (Ef 4;7) para ensinar – trazer conhecimento da Verdade que liberta – com o fim de preparar os santos para a obra do ministério, para que o corpo de Cristo seja edificado (Ef 4;12) e não mais sejamos como meninos, agitados de um lado para outro e levados ao redor por todo vento de doutrina, pela artimanha dos homens, pela astúcia com que induzem ao erro (Ef 4;14). Será que estamos atentos a isso (2Pe 3:17)? Estamos conferindo nossa rota no mapa que é a Bíblia (2Jo 1;9)? Será que o nosso culto é feito como Deus nos instruiu (Jo 14;21,Hb 11;6, 1Co 11:23)? Ou temos trazido elementos do Egito (Lc 21;34)? É fogo estranho que temos em nossos púlpitos (2Pe 2:1)? Ou o martelo que esmiúça a penha, o fogo consumidor (Jr 23;29), a Verdade que liberta (Jo 8;32), a Palavra de Deus que apta para discernir as intenções do coração humano (Hb 4;12)?

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