Por Arthur W. Pink
No sétimo capítulo da carta aos
Romanos, o apóstolo Paulo se referiu a dois assuntos: primeiramente, ele
mostrou qual é a relação do crente para com a lei de Deus —
judicialmente, o crente está emancipado da maldição e da penalidade da
lei (vv. 1-6); moralmente, o crente está sob laços de obediência à lei
(vv. 22, 25). Em segundo, Paulo nos protegeu da falsa inferência que
poderia ser deduzida daquilo que ele havia ensinado no capítulo 6.
No
capítulo 6, versículos 1 a 11, Paulo havia apresentado a união do
crente com Cristo, retratando o crente como alguém “morto para o
pecado” (vv. 2, 7, etc.). Em seguida, do versículo 11 em diante, ele
mostrou o efeito que essa verdade deve ter sobre o viver do crente. No
capítulo 7, o apóstolo Paulo seguiu a mesma ordem de pensamento. Em
Romanos 7.1-6, ele falou sobre a identificação do crente com Cristo,
apresentado-o como “morto para a lei” (vv. 4 a 6). Em seguida, do
versículo 7 em diante, Paulo descreveu as experiências do crente.
Assim, nos capítulos 6 e 7 de Romanos, na primeira metade de ambos,
Paulo aborda a posição do crente, enquanto na segunda metade de ambos
os capítulos ele fala sobre o estado do crente, mas com a seguinte
diferença: a segunda metade de Romanos 6 revela qual deve ser o nosso
estado, enquanto a segunda metade do capítulo 7 (vv. 13-25) mostra qual
é, na realidade, o nosso estado.
A presente controvérsia
suscitada sobre Romanos 7 é amplamente um fruto do perfeccionismo de
John Wesley e seus seguidores. O fato de que esses irmãos, dos quais
temos motivo para reverenciar, adotaram este erro de forma modificada
apenas nos mostra quão abrangente em nossos dias é o espírito do
laodiceísmo. A segunda metade de Romanos 7 descreve o conflito das duas
naturezas que o crente possui; simplesmente apresenta em detalhes o
que está sumariado em Gálatas 5.17. As afirmações de Romanos 7.
14,15,18,19 e 21 são verdadeiras a respeito de todos os crentes que
vivem nesse mundo. Todo crente fica aquém, muito aquém do padrão
colocado diante dele; estamos nos referindo ao padrão de Deus, e não ao
padrão dos ensinadores da suposta “vida vitoriosa”. Se qual- quer
leitor crente disser que Romanos 7 não descreve a sua vida, afirmamos
com toda a bondade que ele se encontra terrivelmente enganado. Não
estamos dizendo que todo crente quebra a lei dos homens ou que ele é um
ousado transgressor da lei de Deus. Estamos afirmando que a vida de
todo crente está muito aquém do nível de vida que nosso Senhor
vivenciou, quando esteve neste mundo. Estamos dizendo que muito da
“carne” ainda se evidencia em todo crente, inclusive naqueles que se
vangloriam, em voz alta, de suas conquistas espirituais. Estamos dizendo
que todo crente tem necessidade urgente de orar suplicando perdão por
seus pecados diários (Lc 11.4), pois “todos tropeçamos em muitas
coisas” (Tg 3.2).
Nos próximos parágrafos, consideraremos os dois últimos versículos de
Romanos 7, que dizem: “Desventurado homem que sou! Quem me livrará do
corpo desta morte? Graças a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor. De
maneira que eu, de mim mesmo, com a mente, sou escravo da lei de Deus,
mas, segundo a carne, da lei do pecado” (vv. 24-25).
Essa é a
linguagem de uma alma regenerada e resume o conteúdo dos versículos
imediatamente anteriores. O homem incrédulo é realmente desventurado,
mas ele não conhece a “desventurança” que evoca a lamentação expressada
nessa passagem. Todo o contexto se dedica a descrever o conflito entre
as duas naturezas do filho de Deus. “Porque, no tocante ao homem
interior, tenho prazer na lei de Deus” (v. 22) — isso é verdade apenas
sobre a pessoa nascida de novo. Todavia, aquele que tem prazer na lei
de Deus encontra, em seus “membros, outra lei”. Isso não pode estar
limitado aos membros do corpo físico, mas tem de ser entendido como algo
que inclui todas as várias partes de sua personalidade carnal — a
memória, a imaginação, a vontade, o coração, etc.
Essa “outra
lei”, disse o apóstolo, guerreava contra a lei de sua mente (a nova
natureza); e não somente isso, ela também o fazia “prisioneiro da lei
do pecado” (v. 23). Ele não definiu em que extensão se expressava essa
servidão. Mas ele estava em servidão à lei do pecado, assim como todo
crente também o está. A vagueação da mente, na hora de ler a Palavra de
Deus, os maus pensamentos que brotam do coração (Mc 7.21), quando
estamos envolvidos na oração, as más figuras que, às vezes, aparecem
quando estamos em estado de sonolência — citando apenas alguns — são
exemplos de ha- vermos sido feitos prisioneiros “da lei do pecado”. “Se o
princípio mau de nossa natureza prevalece, a ponto de despertar em nós
apenas um pensamento mau, ele nos tomou como cativos. Visto que ele
nos conquistou, estamos vencidos e feitos prisioneiros” (Robert
Haldane).
O reconhecimento dessa guerra em seu íntimo e o fato
de que se tornou cativo ao pecado levam o crente a exclamar:
“Desventurado homem que sou!” Esse é um clamor produzido por uma
profunda compreensão da habitação do pecado. É a confissão de alguém que
reconhece não haver bem algum em seu homem natural. É o lamento
melancólico de alguém que descobriu algo a respeito da horrível
profundeza de iniqüidade que existe em seu próprio coração. É o gemido
de uma pessoa iluminada por Deus, uma pessoa que odeia a si mesma — ou
seja, o homem natural — e anela por libertação.
Esse gemido —
“Desventurado homem que sou!” — expressa a experiência normal do
crente; e qualquer crente que não geme dessa maneira está em um estado
de anormalidade e falta de saúde espiritual. O homem que não profere
diariamente esse clamor se encontra tão ausente da comunhão com Cristo,
ou tão ignorante dos ensinos das Escrituras, ou tão enganado a
respeito de sua condição atual, que não conhece as corrupções de seu
coração e a desprezível imperfeição de sua própria vida.
Aquele
que se curva diante do solene e perscrutador ensino da Palavra de Deus,
aquele que nela aprende a terrível ruína que o pecado tem realizado na
constituição do ser humano, aquele que percebe o padrão elevado que
Deus nos tem proposto não falhará em descobrir que é um ser maligno e
vil. Se ele se esforça para perceber o quanto tem falhado em alcançar o
padrão de Deus; se, na luz do santuário divino, ele descobre quão
pouco se parece com o Cristo de Deus, então, reconhecerá que essa
linguagem de Romanos 7 é muito apropriada para descrever sua tristeza
espiritual. Se Deus lhe revela a frieza de seu amor, o orgulho de seu
coração, as vagueações de sua mente, o mal que contamina suas atitudes
piedosas, o crente haverá de clamar: “Desventurado homem que sou!” Se o
crente estiver consciente de sua ingratidão e de quão pouco ele tem
apreciado as misericórdias diárias de Deus; se o crente percebe a
ausência daquele fervor profundo e genuíno que tem de caracterizar seus
louvores e sua adoração Àquele que é “glorificado em santidade” (Êx
15.11); se o crente reconhece o espírito pecaminoso de rebeldia que,
com freqüência, o faz murmurar ou irrita-o contra as realizações dEle
em sua vida cotidiana; se o crente admite que está ciente não apenas de
seus pecados de comissão, mas também daqueles de omissão, dos quais
ele é culpado todos os dias, ele realmente clamará: “Desventurado homem
que sou!”
Esse clamor não será proferido apenas por aquele
crente que se acha afastado do Senhor. Aquele que está em comunhão
verdadeira com o Senhor Jesus também emitirá esse gemi- do, todos os
dias e todas as horas. Sim, quanto mais o crente se achega a Cristo,
tanto mais ele descobrirá as corrupções de sua velha natureza, e tanto
mais ardentemente desejará ser liberto de tal natureza. É somente
quando a luz do sol inunda um cômodo que a poeira e a sujeira são
completamente revelados. Quando estamos realmente na presença dAquele
que é luz, ficamos conscientes da impureza e impiedade que habita em
nós e contamina cada parte de nosso ser. E essa descoberta nos levará a
clamar: “Desventurado homem que sou!”
“Mas”, talvez alguns
perguntem, “a comunhão com Cristo não produz regozijo, ao invés de
gemidos?” Respondemos que a comunhão com Cristo produz ambas as coisas.
Isso aconteceu com Paulo. Em Romanos 7.22, ele afirmou: “Tenho prazer
na lei de Deus”. Logo em seguida, porém, ele clamou: “Desventurado
homem que sou!” Outras passagens também nos mostram isso. Em 2
Coríntios 6, Paulo disse: “Entristecidos, mas sempre alegres” (v. 10) —
entristecido por causa de suas falhas, por causa de seus pecados
diários; alegre por causa da graça que ainda permanecia com ele e por
causa da bendita provisão que Deus fizera até para os pecados de seus
santos. Também em Romanos 8, depois de haver declarado: “Agora, pois,
já nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus” (v. 1); “O
próprio Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de
Deus. Ora, se somos filhos, somos também herdeiros, herdeiros de Deus e
co-herdeiros com Cristo; se com ele sofremos, também com ele seremos
glorificados” (vv. 16-17), o apóstolo Paulo acrescentou: “Também nós,
que temos as primícias do Espírito, igualmente geme- mos em nosso
íntimo, aguardando a adoção de filhos, a redenção do nosso corpo” (v.
23). O ensino do apóstolo Pedro é semelhante ao de Paulo — “Nisso
exultais, embora, no presente, por breve tempo, se necessário, sejais
contristados por várias provações” (1 Pe 1.6). Tristeza e gemido não se
encontram ausentes no mais elevado nível de espiritualidade.
Nestes
dias de complacência e orgulho laodicense, existe considerável parola e
muita exaltação a res- peito da comunhão com Cristo; porém, quão pouca
manifestação dessa comunhão nós contemplamos! Onde não existe qualquer
senso de completa indignidade; onde não existe qualquer lamentação
pela depravação total de nossa natureza; onde não existe qualquer
entristecimento por nossa falta de conformidade com Cristo; onde não
existe qualquer gemido por havermos sido feitos “prisioneiros” do
pecado; em resumo, onde não existe o clamor: “Desventurado homem que
sou!”, deve haver um grande temor de que ali não existe, de maneira
alguma, comunhão com Cristo.
Quando estava andando com o
Senhor, Abraão exclamou: “Eis que me atrevo a falar ao Senhor, eu que
sou pó e cinza” (Gn 18.27). Estando face a face com Deus, Jó declarou:
“Por isso, me abomino” (Jó 42.6). Ao entrar na presença de Deus, Isaías
clamou: “Ai de mim! Estou perdido! Porque sou homem de lábios impuros”
(Is 6.5). Quando teve aquela maravilhosa visão de Cristo, Daniel
confessou: “Não restou força em mim; o meu rosto mudou de cor e se
desfigurou, e não retive força alguma” (Dn 10.8). Em uma das últimas
epístolas do apóstolo dos gentios, lemos: “Fiel é a palavra e digna de
toda aceitação: Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores,
dos quais eu sou o principal” (1 Tm 1.15). Essas declarações não
procederam de pessoas não-regeneradas, e sim dos lábios de santos de
Deus. Elas não foram confissões de crentes relaxados; pelo contrário,
elas foram proferidas pelos mais eminentes membros do povo de Deus. Em
nossos dias, onde encontramos crentes que podem ser colocados lado a
lado com Abraão, Jó, Isaías, Daniel e Paulo? Onde, realmente?! Mas eles
foram homens que estavam conscientes de sua vileza e indignidade!
“Desventurado
homem que sou!” Essa é a linguagem de uma alma nascida de novo; é a
confissão de um crente normal (não-iludido, não-enganado). A essência
dessa afirmativa pode ser encontrada não somente nas declarações dos
santos do Antigo e do Novo Testamento, mas também nos escritos de
muitos dos eminentes servos de Cristo que viveram nos últimos séculos.
As afirmações e o testemunho pronunciado pelos eminentes santos do
passado eram muito diferentes da ignorância e da arrogante jactância
dos laodicences modernos! É um refrigério volver-nos das biografias de
nossos dias para aquelas biografias escritas há muito tempo. Medite
nos trechos de biografias que apresentamos em seguida.
Bradford,
que foi martirizado no reinado de Maria, a sanguinária, em uma carta
dirigida a um amigo que estava em outra prisão, subscreveu-se com as
seguintes palavras: “O pecaminoso John Bradford, um hipócrita notável, o
pecador mais miserável, de coração endurecido e ingrato — John
Bradford” (1555).
O piedoso Samuel Rutherford escreveu: “Este
corpo de pecado e de corrupção torna amargo e envenena nosso regozijo.
Oh! Se eu estivesse onde nunca mais pecarei!” (1650).
O bispo
Berkeley disse: “Não posso orar, mas cometo pecados. Não posso pregar,
mas cometo pecados. Não posso ministrar, nem receber a Ceia do Senhor,
mas cometo pecados. Preciso arrepender-me de meu próprio
arrependimento; e as lágrimas que derramei necessitam da lavagem do
sangue de Cristo” (1670).
Jonathan Edwards, em sua obra A Vida de David Brainerd
(o primeiro missionário entre os índios, cuja devoção a Cristo foi
testemunhada por todos os que o conheciam), afirmou a respeito de
Brainerd: “Sua iluminação, suas afeições e seu conforto espiritual
parecem ter sido, em grande medida, acompanhadas por humildade
evangélica; consistiam em um senso de sua completa insuficiência, de
sua vileza e de sua própria abominação; com uma disposição
correspondente e uma propensão do coração. Quão profundamente
Brainerd foi afetado quase continuamente por seus grandes defeitos na
vida cristã; por sua ampla distância daquela espiritualidade e daquela
disposição mental que convém a um filho de Deus; por sua ignorância,
seu orgulho, sua apatia e sua esterilidade! Ele não foi somente afetado
pela recordação dos pecados cometidos antes de sua conversão, mas
também pelo sentimento de sua presente vileza e corrupção. Brainerd não
se mostrava apenas disposto a considerar os outros crentes melhores do
que ele mesmo e a olhar para si mesmo como o pior e o menor de todos
os crentes, mas também, com muita freqüência, a ver a si mesmo como o
mais vil e o pior de todos os homens”.
O próprio Jonathan
Edwards, que entre muitos foi mais honrado por Deus (quer em suas
realizações espirituais, quer na extensão em que Deus o usou para
abençoar outros), escreveu nos últimos dias de sua vida: “Quando olho
para meu coração e vejo a sua impiedade, ele parece um abismo
infinitamente mais profundo do que o inferno. E parece-me que, se não
fosse a graça de Deus, exaltada e elevada à infinita sublimidade de toda
a plenitude e glória do grande Jeová, eu deveria comparecer,
mergulhado em meus pecados, nas profundezas do próprio inferno, muito
distante da contemplação de todas as coisas, exceto do olhar da graça
soberana, que pode destruir tal profundeza. É comovente pensar o quanto
eu ignorava, quando era um crente novo (infelizmente, muitos crentes
velhos ainda o ignoram — A. W. Pink), a profunda impiedade, orgulho,
hipocrisia e engano deixados em meu coração” (1743).
Augustus
Toplady, autor do hino “Rocha Eterna”, escreveu as seguintes palavras
em seu diário no dia 31 de dezembro de 1767: “Ao fazer uma
retrospectiva deste ano, desejo confessar que minha infidelidade tem
sido excessivamente grande, e meus pecados, ainda maiores. Todavia, as
misericórdias de Deus têm sido maiores do que ambos”. E mais: “Minhas
falhas, meus pecados, minha incredulidade e minha falta de amor me
afundariam no mais profundo do inferno, se Jesus não fosse minha justiça
e meu Redentor”.
Observem estas palavras de uma piedosa
mulher, a esposa do eminente missionário Adoniran Judson: “Oh! Como eu
me regozijo porque estou fora do redemoinho! Sou gaiata e fútil demais,
para ser a esposa de um missionário! Talvez a gaiatice seja o meu mais
leve pecado. Não são os atrativos do mundo que me tornam um simples
bebê na causa de Cristo; pelo contrário, é a minha frieza de coração, a
minha insignificância, a minha falta de fé, a minha ineficiência e
inércia espiritual, por amor do meu próprio ‘eu’, e a minha
pecaminosidade abundante e inerente de minha natureza”.
John
Newton, o escritor do bendito hino “Graça Admirável” (que afirma:
“Graça admirável, quão doce é o som que salvou um ímpio como eu; estava
perdido, mas fui achado; era cego, agora vejo”), quando se referia às
expectativas que ele nutria no final de sua vida cristã, escreveu o
seguinte: “Infelizmente, essas minhas preciosas expectativas se
tornaram como sonhos dos mares do Sul. Vivi neste mundo como um pecador e
creio que assim morrerei. Eu ganhei alguma coisa? Sim, ganhei aquilo
com o que antes eu preferia não viver! Essas provas acumuladas do
engano e da terrível impiedade do meu coração me ensinaram, pela bênção
do Senhor, a compreender o que significa dizer: vejam, eu sou um homem
vil… Eu me envergonhava de mim mesmo, quando comecei a procurar a
bênção do Senhor; agora, eu me envergonho mais ainda”.
James
Ingliss (editor de “Marcos no Deserto”), no final de sua vida,
escreveu: “Visto que fui trazido a uma nova opinião sobre o fim, a
minha vida parece ser constituída de tantas oportunidades desperdiçadas
e de tanta escassez de resultados, que às vezes isso é muito doloroso.
A graça, porém, se apresenta para satisfazer todas essas deficiências;
e o Senhor Jesus também será glorificado em minha humilhação” (1872).
J. H. Brookers, o biógrafo de James Ingliss, observou sobre essas
palavras: “Quão semelhante a Cristo e quão diferente daqueles que estão
se gloriando em suas supostas realizações!”
Apresentamos mais
uma citação, proveniente de um sermão de Charles H. Spurgeon. O
Príncipe dos Pregadores disse: “Existem alguns crentes professos que
falam sobre si mesmos em termos de admiração. Todavia, em meu íntimo,
detesto mais e mais esses discursos, a cada dia que eu vivo. Aqueles
que falam dessa maneira arrogante devem possuir uma natureza muito
diferente da minha. Enquanto eles estão congratulando a si mesmos,
tenho de me prostrar aos pés da cruz de Cristo e admirar-me de que estou
salvo, pois sei que fui salvo. Tenho de admirar-me de não crer mais
pro- fundamente em Cristo e de que sou privilegiado por crer nEle.
Tenho de admirar-me de não amá-Lo mais profundamente, mas igualmente
devo admirar-me até de que O amo de alguma maneira. Devo admirar-me de
não possuir mais santidade e admirar-me, igualmente, de que eu tenho
algum desejo de ser santo, levando em conta quão corrompida, degenerada
e depravada natureza eu ainda encontro em minha alma, apesar de tudo o
que a graça de Deus tem feito em mim. Se Deus permitisse que as fontes
do grande abismo da depravação se rompessem nos melhores homens que
vivem neste mundo, eles se tornariam demônios tão maus como o próprio
diabo. Não me importo com o que dizem esses van- gloriosos a respeito
de suas próprias perfeições. Estou certo de que eles não conhecem a si
mesmos; se conhecessem, não falariam como freqüentemente o fazem. Mesmo
no crente que está mais próximo do céu existe combustível suficiente
para acender outro inferno, se Deus tão-somente permitisse que uma
chama caísse sobre ele. Alguns crentes parecem que nunca descobrem
isto. Eu quase desejo que eles nunca o descubram, pois esta é uma
descoberta dolorosa para qualquer um fazer; mas ela tem o efeito
benéfico de fazer que paremos de confiar em nós mesmos e de nos levar a
nos gloriarmos somente no Senhor”.
Poderíamos apresentar outros
testemunhos dos lábios e dos escritos de homens igualmente piedosos e
eminentes, porém citamos o suficiente para mostrar que os santos de
todas as épocas tinham motivo para fazerem suas essas palavras do
apóstolo Paulo: “Desventurado homem que sou!” Faremos mais algumas
poucas observações sobre essas palavras finais de Romanos 7.
“Quem
me livrará do corpo desta morte?” “Quem me livrará?” Esta não é uma
linguagem de desespero, e sim de um desejo ardente de ajuda de fora e
do alto. Aquilo do que o apóstolo desejava ser livre é chamado de “o
corpo desta morte”. Esta é uma expressão figurada, pois a natureza
carnal é chamada de “o corpo do pecado” e vista como algo que tem
“membros” (Rm 7.23). Portanto, entendemos que as palavras do apóstolo
significam: “Quem me livrará desse fardo mortal e pernicioso — meu eu
pecaminoso?!”
No versículo seguinte, o apóstolo responde essa
pergunta: “Graças a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor” (Rm 7.25).
Deve ser óbvio para qualquer mente imparcial que isso aponta para o
futuro. Paulo havia perguntado: “Quem me livrará?” A sua resposta foi:
Jesus Cristo me livrará. Isso expõe o erro daqueles que ensinam uma
libertação presente da natureza carnal, por intermédio do poder do
Espírito Santo. Em sua resposta, o apóstolo não falou nada sobre o
Espírito Santo; ao invés disso, ele mencionou apenas “Jesus Cristo,
nosso Senhor”. Não é por meio da obra presente do Espírito Santo em nós
que os crentes serão libertados “do corpo desta morte”, e sim por meio
da vinda futura do Senhor Jesus Cristo para nós. Naquele tempo, esse
corpo mortal será revestido de imortalidade, e a nossa corrupção, de
incorrupção.
Como se estivesse pensando em remover toda dúvida a respeito de que essa libertação ocorrerá no futuro, o apóstolo concluiu dizendo: “De maneira que eu, de mim mesmo, com a mente, sou escravo da lei de Deus, mas, segundo a carne, da lei do pecado”. O leitor deve observar cuidadosamente que Paulo havia agradecido a Deus pelo fato de que ele seria libertado. A última parte do versículo 25 resume o que ele havia dito na segunda parte de Romanos 7; descreve a vida dupla do crente. A nova natureza serve a lei de Deus; a velha natureza, até ao final da História, servirá à “lei do pecado”. Que isso aconteceu com o apóstolo Paulo é evidente das palavras que ele escreveu no final de sua vida, quando chamou a si mesmo de “o principal” dos pecadores (1 Tm 1.15). Essa afirmativa não era um exagero de fervor evangelístico, nem mesmo um motejo de modesta hipocrisia. Era uma convicção segura, uma experiência vivenciada, uma conscientização firme de alguém que viu com amplitude as profundezas da corrupção que havia em seu próprio íntimo e que sabia o quanto ficava aquém de atingir o padrão de santidade que Deus havia colocado diante dele. Essa também é a convicção e a confissão de todo crente que não se encontra cativo ao preconceito. E o resultado dessa convicção fará o crente desejar mais intensamente o livramento e agradecer a Deus com mais fervor pela promessa do livramento, na vinda de nosso Senhor, “o qual transformará o nosso corpo de humilhação, para ser igual ao corpo da sua glória, segundo a eficácia do poder que ele tem de até subordinar a si todas as coisas” (Fp 3.20). E, havendo feito isso, o Senhor Jesus nos apresentará, “com exultação, imaculados diante da sua glória” (Jd 24). Aleluia! Que grande Salvador!
É admirável que somente mais uma
vez a palavra “desventurado” é utilizada no Novo Testamento (no texto
grego). Essa outra ocorrência está em Apocalipse 3.17, onde Cristo
disse à igreja de Laodicéia: “Nem sabes que tu és infeliz”. A
arrogância dos membros dessa igreja era que eles não precisavam “de
coisa alguma”. Eles estavam tão inchados com a soberba, tão satisfeitos
com o que haviam atingido, que não tinham consciência de sua própria
miséria. E não é isso mesmo que testemunhamos em nossos dias? Não é
evidente que estamos vivendo no período laodiceiano da história da
Igreja? Muitos estavam cônscios da “necessidade”, mas a- gora imaginam
que receberam a “segunda bênção”, ou que obtiveram o “batismo do Espírito Santo”, ou que entraram na
“vitória”. E, imaginando isso, pensam que sua necessidade foi
satisfeita. E a prova disso é que eles vivem em uma atmosfera de tal
superioridade espiritual, que nos dirão haverem saído de Romanos 7 e
entrado na experiência de Romanos 8. Com desprezível complacência, eles
nos dirão que Romanos 7 não descreve mais a experiência deles. Com
presunçosa satisfação, eles olharão com piedade para o crente que
clama: “Desventurado homem que sou!” e como o fariseu, no templo,
agradecerão a Deus porque a situação deles é diferente. Pobres almas
cegas! É exatamente o que o Filho de Deus afirma nessa passagem de
Apocalipse: “Nem sabes que tu és infeliz”. Nós dissemos: “Almas cegas”,
porque observamos que é para os crentes laodicenses que Jesus declara:
“Aconselho-te que de mim compres... colírio para ungires os olhos, a
fim de que vejas” (Ap 3.19).
Devemos observar que na segunda
parte de Romanos 7 o apóstolo Paulo fala no singular. Isso é admirável e
bastante abençoador. O Espírito Santo desejava transmitir-nos a
verdade de que mesmo as mais elevadas realizações na graça não isentam o
crente da dolorosa experiência ali descrita. Com o pincel de um
artista, o apóstolo retratou — utilizando a si mesmo como o objeto da
pintura — a luta espiritual do filho de Deus. Ele ilustrou, por re-
ferir-se à sua própria experiência, o conflito incessante que se
realiza entre duas naturezas antagonistas naquele que nasceu de novo.
Que,
em sua misericórdia, Deus nos liberte do espírito de orgulho que agora
corrompe o ambiente do evangelicalismo moderno e nos conceda um
humilde ponto de vista a respeito de nossa própria impureza; fazendo-o
de tal modo que nos unamos ao apóstolo Paulo em clamar com um fervor
cada vez mais profundo: “Desventurado homem que sou!” Sim, que Deus
outorgue tanto ao autor dessas linhas quanto ao seu leitor uma tão
grande percepção de sua própria depravação e indignidade, que eles
realmente se prostrem no pó, diante de Deus, e O adorem por sua
maravilhosa graça para com esses pecadores que merecem o inferno.
Fonte: Editora Fiel
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