quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Calvin, Haroldo e a graça barata

 
Por Eric Rauch

Quando nosso filho mais velho completou oito anos, eu comecei a tentar gastar mais tempo ensinando, lendo, e pensando com ele sozinho, separado das outras crianças. Como eu não nasci em um lar cristão, frequentemente encontro dificuldade em ser o cabeça espiritual – isso não vem fácil, parece estranho e forçado às vezes. No entanto, em outras vezes, uma verdade espiritual cai sobre o meu colo e eu e meu filho somos imensamente abençoados por ela. Uma ocasião rara como essa aconteceu algumas noites atrás…

Como me mudei há pouco tempo, muitos dos meus livros continuam espalhados pela casa em vários lugares – em caixas, em armários, em pilhas de alturas precárias – para o grande desgosto da minha paciente esposa. Num desses lugares supracitados, meu filho encontrou algumas das minhas antigas coleções de Calvin e Haroldo e começou a lê-las. Já que esses clássicos atemporais são algo que todos os jovens deveriam ler, eu não tive objeções. Enquanto estávamos conversando algumas noites depois, eu estava tentando mostrar ao meu filho a diferença entre misericórdia e graça. “Misericórdia”, eu enfatizei, “é não receber o que merecemos, e graça é receber o que não merecemos” (olhares em branco de uma criança de oito anos). Então, tentei uma tática diferente: “A misericórdia de Deus é o que nos livra da punição pelo nosso pecado, mas Sua graça foi o que levou Jesus à cruz para sofrer a punição no nosso lugar” (algumas luzes começando a aparecer no cérebro de uma criança de oito anos). A parte da misericórdia pareceu dar um clique na cabeça dele e o fez relembrar de uma tirinha de Calvin e Haroldo que ele tinha lido mais cedo naquele dia. Quando ele me trouxe o livro que continha a tirinha, eu me sentei maravilhado com a simples e direta lição perante mim.[1]

Em poucas palavras, esse é o cenário: é concedido a Calvin o grande privilégio de poder usar os binóculos de seu pai, que lhe disse para ser extremamente cuidadoso. Com certeza, ele o quebrou e estava agoniado o dia todo, se sentindo péssimo e pensando em quanto o pai dele o puniria. Em uma atitude de misericórdia sem precedentes, o pai perdoou Calvin (sem punição) e, na verdade, comprou para Calvin  binóculos somente para ele (graça). Essa simples tirinha deu ao meu filho uma ilustração do que eu estava falando, e o ajudou a entender mais profundamente a misericórdia de Deus e a Sua graça por meio de Seu filho. Isso também me mostrou como eu frequentemente tendo a explicar a Bíblia de maneira muito engenhosa para os meus filhos. Na maioria das vezes, eu sobrecarrego meus filhos com muita informação, ao invés de me contentar em explicar um ou dois pontos. Esquecendo de que o próprio Jesus ensinou adultos por meio de parábolas, tento ensinar minhas crianças lições de 10 pontos em teologia e acabo frustrando todos, eles e eu. Como se já não fosse o bastante, Calvin e Haroldo tinham mais uma coisa para mostrar a mim e a meu filho.

No último quadrinho da tirinha, depois de Calvin ser alvo da graça de seu pai, sua mente pecaminosa imediatamente imaginou uma forma de tirar total vantagem da situação. Em Romanos 5:20, Paulo escreve: “onde abundou o pecado, superabundou a graça”. Calvin, certamente, entendeu isto: se quebrando os binóculos do papai eu ganhei os meus próprios, então devo quebrar algumas das ferramentas elétricas do papai também! Mas Paulo continua sua linha de raciocínio em Romanos 6:1-2 “Que diremos, pois? Permaneceremos no pecado, para que seja a graça mais abundante? De modo nenhum! Como viveremos ainda no pecado, nós os que para ele morremos?”. A instantânea amnésia de Calvin a respeito de seu pecado e a atitude desdenhosa para com a graça de seu pai não é algo novo. Eram coisas prevalentes na igreja primitiva – por isso as palavras de Paulo em Romanos 5 e 6 – e continuam sendo problemas nos nossos dias. John MacArthur escreve:
O evangelho em voga hoje oferece uma falsa esperança para os pecadores. Promete a eles a possibilidade de ter vida eterna e continuar vivendo em rebelião contra Deus. De fato, ele encoraja as pessoas a clamarem a Jesus como seu Salvador e adiar o compromisso de obedecê-Lo como Senhor. Promete salvação do inferno, mas não necessariamente liberdade da iniquidade. Oferece uma segurança falsa para pessoas que se divertem nos pecados da carne e desprezam o caminho da santidade. Ao separar fé de lealdade, ele ensina que a aceitação intelectual é tão válida quanto a obediência de todo coração à verdade… Romanos 6 é a refutação de Paulo ao antinomianismo[2]. Ele argumenta que nossa união com Cristo garante que não seremos mais escravos do pecado… Aqueles que argumentam contra a salvação de senhorio geralmente embasam sua teologia na suposição equivocada de que a obra de Deus na salvação termina na justificação. O restante, muitos acreditam, é puramente o esforço do próprio crente. Santificação, obediência, renúncia, e todos os aspectos do discipulado são deixados para os crentes escolherem fazê-los ou não.[3]
Assim como a “graça barata” de Calvin fez com que ele procurasse por outras formas de ganhar do sistema, nossas igrejas estão lotadas de homens e mulheres que estão abandonando o futuro da igreja em troca de uma rápida dose de graça temporária. Discipulado é uma prática que não existe em nossas igrejas americanas. Me contaram certa vez em uma igreja em que estive que eles tinham “tentado fazer um programa de discipulado alguns anos atrás, mas era muito difícil para continuar com ele”. Se esse não é um comentário triste, então eu não sei o que é. A atual obsessão com o tamanho da igreja e seu crescimento é sem sentido se não estivermos discipulando os membros que nós temos. Nossos velhos e “endurecidos” membros precisam condenar esse espírito de antinomianismo de nossa era e ajudar na santificação dos homens e mulheres jovens de nossas congregações:
“Quanto aos homens idosos, que sejam temperantes, respeitáveis, sensatos, sadios na fé, no amor e na constância. Quanto às mulheres idosas, semelhantemente, que sejam sérias em seu proceder, não caluniadoras, não escravizadas a muito vinho; sejam mestras do bem, a fim de instruírem as jovens recém-casadas a amarem ao marido e a seus filhos, a serem sensatas, honestas, boas donas de casa, bondosas, sujeitas ao marido, para que a palavra de Deus não seja difamada. Quanto aos moços, de igual modo, exorta-os para que, em todas as coisas, sejam criteriosos. Torna-te, pessoalmente, padrão de boas obras. No ensino, mostra integridade, reverência, linguagem sadia e irrepreensível, para que o adversário seja envergonhado, não tendo indignidade nenhuma que dizer a nosso respeito.” (Tito 2.2-8)
Nós estamos testemunhando uma época interessante na história da igreja. As pessoas estão começando a levar a Bíblia a sério novamente. O ensino em casa está se tornando mais popular a cada ano. Escolas cristãs estão ficando cheias. As famílias estão tendo mais filhos. Mas tudo isso pode ser em vão se nossos homens e mulheres mais velhos não aconselharem e treinarem nossos homens e mulheres mais jovens na sã doutrina. Não é só porque seus filhos estão crescidos que você está fora do jogo. Ache uma mãe ou um pai jovem em sua congregação e ajude-a[o] a crescer em graça. Não provoque a graça de Deus esperando por ferramentas elétricas, saia e use seus binóculos (mas não para ir à praia olhar para as garotas).

Notas:
[1] Bill Watterson, Weirdos From Another Planet! (Kansas City: Andrews and McMeel, 1990), 46.
[2] Antinomianismo: corrente teológica que nega ou diminui a importância da lei de Deus na vida do crente.
[3] John MacArthur, The Gospel According to Jesus (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1994), xxi, 201–202.

Fonte: Ipródigo

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