terça-feira, 29 de junho de 2010

A LOUCA DA CASA


Por Jonas Madureira

No semestre de inverno de 1899 e 1900, o último grande representante da teologia liberal, Adolf von Harnack, proferiu sua famosa série de dezesseis conferências sobre a “A essência do cristianismo”, na Universidade de Berlim. Essas palestras foram recentemente traduzidas para o português, pela editora Reflexão, sob o título “O que é cristianismo?”. Sem dúvida, trata-se de um conjunto de documentos dos mais importantes e definidores do modus operandi do liberalismo teológico do final do século XIX.

Acredito que esse modus operandi é basicamente marcado pela condenação e eliminação da apologética e da filosofia da religião. Duas disciplinas que eram consideradas até então como imprescindíveis para o bom exercício da teologia. Um exemplo emblemático dessa perspectiva pode ser visto nas palavras que Harnack proferiu na abertura de sua primeira conferência:

A pergunta ‘o que é cristianismo?’ só pode ser respondida em sentido histórico, isto é, pela ciência histórica e pela experiência adquirida na vida ao longo dos anos. Ficam, assim, excluídas as questões levantadas pelos apologistas e pelos filósofos da religião.

Qual a razão dessa condenação? Qual o motivo da aversão à apologética e à filosofia da religião? Essa condenação e aversão é fruto de uma visão de ciência que acredita ser possível excluir elementos que ameaçariam a suposta imparcialidade ou neutralidade acadêmica e científica. Em outras palavras, a exclusão da apologética e da filosofia da religião é resultado de uma crença de que é possível fazer teologia sem pressupostos religiosos.

Essa crença é bastante coerente com o “espírito de época” em que Harnack vivia. No final do século XIX, o positivismo representava uma concepção científica quase hegemônica na Alemanha. Nas diversas disciplinas, predominava o seguinte lema: “Fatos empíricos, nada de especulação e conceitos vazios”. A perspectiva positivista dos “fatos” exigia a eliminação de toda especulação que presumisse o conhecimento das verdadeiras causas dos fenômenos — como é o caso da “teologia clássica”, por exemplo — em detrimento da pesquisa dos fenômenos e de suas relações com as leis naturais.

Outro dado importante é que as “ciências da natureza” (física, química, biologia, etc.) gozavam do status de modelo de “ciência”. Portanto, qualquer disciplina que pretendesse ser científica tinha de investigar o seu “objeto” segundo o método das “ciências da natureza”, ou seja, tinha de investigá-lo a partir da esfera do cientificismo. Um exemplo dessa atitude é a obra Psicologia Fisiológica, de Wilhelm Wundt, mais conhecido como o fundador do primeiro laboratório de psicologia experimental, em Leipzig, em 1879, e que estabeleceu o método da física como o mais apropriado para o concurso da psicologia.

De fato, essa subserviência das “ciências do espírito” (história, psicologia, filosofia, teologia, etc.) às “ciências da natureza” representa a grande tendência presente no final do século XIX. Ou seja, para que disciplinas como a teologia, a história ou a psicologia pudessem ser consideradas como “ciência”, o objeto de estudo de tais disciplinas deveria ser quantificado e submetido a métodos de análise e observação das leis empíricas.

Foi essa subserviência que transformou a teologia numa espécie de “louca da casa”. Veja, na casa das “ciências” (a Universidade), a teologia sobrevive como que aprisionada num sótão, escondida de tudo e de todos — ao menos, presença garantida na biblioteca! Afinal, ela é louca, vive falando de realidades transcendentes, de homens que andam sobre as águas, sobre a ressurreição de mortos, sobre um nascimento virginal, a vida eterna, etc. Temas considerados pela “ciência” como absurdos. Então, uma vez tachada de louca, só lhe restou aceitar sua condição de insanidade. Não é mesmo?

O problema é que se a louca da casa aceitou mesmo tal destino, não aceitou de qualquer jeito. É verdade que, por um lado, ela ficou de fora olhando as outras disciplinas atuando na sociedade, mas, por outro, para não sumir de vez, se limitou a marcar presença nos “seminários teológicos”, que, por sua vez, têm o justo e necessário objetivo de formar missionários e pastores para a igreja.

Porém, eis que surge, em terras brasileiras, uma “luzinha” no fundo da caverna — mas no fundo mesmo! E essa “luzinha” tem um nome curioso, um nome aparentemente mais palatável para o gosto dos que vivem na casa das ciências: chama-se de as “ciências da religião”. Nesse pequeno espaço, cedido por algumas poucas instituições “religiosas”, a teologia de certo modo tem falado. Mas a que preço? Ao preço de falar sem ser apologética e, principalmente, de ter que evitar — sob pena de ter que voltar para o sótão! — defender a existência de sistemas filosófico-religiosos mais consistentes. Ou seja, a louca da casa pode sair do sótão, mas terá de usar sempre a camisa de força da economia, da sociologia, da história, da psicologia, etc. Que dureza, ein?!

“Porque a loucura de Deus é mais sábia do que os homens” 1Co 1.25

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