Por João Calvino
A própria forma da morte de Cristo não carece de grande mistério. A cruz era maldita não apenas na opinião humana, mas também por decreto da lei divina [Dt 21.23]. Logo, enquanto é nela alçado, Cristo se faz sujeito à maldição. E se impôs agir assim para que, enquanto ela é transferida para ele, eximidos fôssemos de toda maldição, a qual, em conseqüência de nossas iniqüidades, nos estava reservada, ou, antes, pendia sobre nós. Isto fora prefigurado até mesmo na lei. Pois as vítimas oferecidas pelos pecados e no Antigo Testamento eram expiatórias, as chamavam aschamot, vocábulo com que, com propriedade, se designa o próprio pecado. Com esta aplicação do termo, o Espírito quis indicar que elas equivaliam a [katharmát – sacrifícios ou ritos de purificação], que tomariam sobre si e susteriam a maldição devida às transgressões. O que, porém, fora representado figurativamente nos sacrifícios mosaicos, isso se exibe em Cristo, atualizado no arquétipo. Portanto, para que levasse a efeito a justa expiação, ofereceu ele a própria vida como um ascham, isto é, um sacrifício expiatório do pecado, como o diz o Profeta [Is 53.10], sobre o qual lançada, de certa maneira, a mancha e a pena, para que deixe de ser-nos ele imputado.
Mais explicitamente, isto mesmo testifica o Apóstolo, quando ensina que “Aquele que não conhecera pecado, foi pelo Pai feito pecado por nós, para que nele fôssemos feitos justiça de Deus” [2Co 5.21]. Ora, o Filho de Deus, absolutamente limpo de toda mácula, revestiu-se, entretanto, do opróbrio e da ignomínia de nossas iniqüidades, e por seu turno nos cobriu de sua pureza. O mesmo parece ter Paulo contemplado quando, em referência ao pecado, ensina ter sido o mesmo condenado em sua carne [Rm 8.3]. Pois, de fato, o Pai anulou o poder do pecado, quando a maldição foi transferida para a carne de Cristo. Indica-se, portanto, com esta afirmação, que em sua morte Cristo foi imolado ao Pai como vítima expiatória, para que, efetuada propiciação por seu sacrifício, não mais nos apavoremos com a ira de Deus.
Agora está claro o que significa essa afirmação do Profeta: “As iniqüidades de todos nós foram postas sobre ele” [Is 53.6], isto é, Aquele que haveria de expungir a sordidez dessas iniqüidades foi das mesmas coberto mediante imputação transferida.
Símbolo deste fato, atesta-o o Apóstolo, foi a cruz, na qual Cristo foi pregado. “Cristo”, diz ele, “nos redimiu da maldição da lei, conquanto se fez maldição por nós. Pois foi escrito: Maldito é todo aquele que pende em um madeiro, para que a bênção de Abraão em Cristo alcançasse os povos”[Gl 3.13, 14; Dt 21.23]. O mesmo Pedro visualizou quando ensina que “no madeiro Cristo levou nossos pecados” [1Pe 2.24], visto que do próprio símbolo da maldição compreendemos mais claramente que foi posto sobre ele o fardo de que havíamos sido oprimidos.
Nem se deve, contudo, entender que Cristo tenha arrostado com esta maldição de modo tal que ele próprio tenha sido dela avassalado. Pelo contrário, em arrostando-a, antes abateu, quebrantou, destroçou-lhe todo o poder. Conseqüentemente, a fé apreende na condenação de Cristo uma absolvição; em sua maldição, uma bênção. Pelo que, não sem causa, magnificentemente proclama Paulo o triunfo que Cristo alcançou para si na cruz, como se esta, que era plena de ignomínia, fosse convertida em carro triunfal. Pois ele diz que foi “pregada na cruz a nota de dívida que nos era desfavorável, e os principados foram totalmente desbaratados, e, assim despojados, foram exibidos em público” [Cl 2.14, 15]. Tampouco isso surpreende, pois, como o atesta outro Apóstolo, “pelo Espírito Eterno Cristo se ofereceu a si mesmo” [Hb 9.14], donde procede essa transmutação de natureza das coisas. Mas, para que estas coisas finquem firme raiz em nosso coração, e no íntimo se nos arraiguem, venham-nos sempre à mente seu sacrifício e ablução. Pois, nem poderíamos confiar com certeza que Cristo nos é redenção [1Co 1.30] resgate [1Tm 2.6] e propiciação [Rm 3.25]; a menos que viesse a ser-nos a vítima sacrificial. E por isso tantas vezes se faz menção de sangue onde a Escritura expõe o modo da redenção. Bem que, entretanto, o sangue de Cristo derramado valeu não apenas para satisfação, mas também serviu de lavagem para purgar-nos as imundícias.
Fonte: O Calvinista
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