sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Eleição e Incapacidade Moral


Por R. C. Sproul

(Jesus disse) Contudo, há descrentes entre vós. Pois Jesus sabia, desde o princípio, quais eram os que não criam e quem o havia de trair. E prosseguiu: Por causa disto, é que vos tenho dito: ninguém poderá vir a mim, se, pelo Pai, não lhe for concedido. À vista disso, muitos dos seus discípulos o abandonaram e já não andavam com ele. Então, perguntou Jesus aos doze: Porventura, quereis também vós outros retirar-vos? Respondeu-lhe Simão Pedro: Senhor, para quem iremos? Tu tens as palavras da vida eterna (João 6.64-68).

Jesus diz que ninguém pode vir a ele sem uma concessão do Pai. João relaciona isso com o comentário de Jesus, que sabia desde o princípio quais eram aqueles que não criam e o trairiam. Outra vez a reação ao ensino de Jesus é impressionante: muitos de seus discípulos o abandonaram. Por que ficaram ofendidos pelas palavras de Jesus? Se é dado às palavras um aspecto arminiano, não vemos razão para a ofensa. Se entenderam que as palavras de Jesus estavam ensinando incapacidade moral e uma dependência completa da graça de Deus, não havia por que ficarem ofendidos. A doutrina de incapacidade moral tem ofendido a muitos, e muitos têm rejeitado a teologia reformada precisamente por isso.

Também interessante é a reação de Pedro às palavras de Jesus. Jesus perguntou a Pedro: "Você também quer ir embora?"

"Senhor, para quem iremos?" Pedro responde: "O Senhor tem as palavras de vida eterna".

Essa resposta sugere que Pedro estava menos do que apaixonado pelo ensino de Jesus. Ele pode ter estado dizendo: "Eu não gosto desta doutrina mais do que aqueles que saíram andando, mas aonde mais podemos ir? O Senhor é o professor que nós seguimos e em quem confiamos. O Senhor tem as palavras de vida eterna, por isso vamos ficar com o Senhor, mesmo se ensina algumas coisas difíceis".

Antes, no Evangelho de João, Jesus diz algumas coisas semelhantes com respeito à incapacidade moral: "Não murmureis entre vós. Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o trouxer (atrair), e eu o ressuscitarei no último dia" (Jo 6.43,44). Apalavra-chave nesta afirmação é atrair. O que se quer dizer com esse atrair? Muitas vezes já ouvi isso explicado que, para uma pessoa vir a Cristo, Deus, o Espírito Santo, precisa primeiro atraída para depois se achegar. Temos a capacidade, porém, de resistir a esse atrair e recusar o convite. Embora essa atração seja uma condição necessária para se chegar a Cristo, não é uma condição suficiente. É necessária, mas não força, não obriga. Nós não podemos ir a Cristo sem sermos atraídos, mas o atrair não garante que nos chegaremos a Cristo.

Estou persuadido de que essa explicação é incorreta. Faz violência ao texto da Escritura, especialmente ao sentido bíblico da palavra atrair. A palavra grega usada é elkõ. O Theological Dictionary ofthe New Testament, de Gerhard Kittel, define elkõ como significando "constranger, forçar por irresistível superioridade". Linguística e lexicograficamente a palavra significa simplesmente "compelir, atrair".

"Compelir" é muito mais forte do que "atrair". Para ver a força desse verbo, examinemos duas outras passagens no Novo Testamento em que se usa elkõ. A primeira passagem está em Tiago 2.6: "Entretanto, vós outros menosprezastes o pobre. Não são os ricos que vos oprimem e não são eles que vos arrastam para tribunais?" Se substituirmos a palavra atrair aqui, o texto seria: "Não são os ricos que vos oprimem e não são eles que vos atraem para tribunais?"

A segunda passagem é Atos 16.19: "Vendo os seus senhores que se lhes desfizera a esperança do lucro, agarrando em Paulo e Silas, os arrastaram para a praça, à presença das autoridades". Seria enganoso dizer que Paulo e Silas foram "atraídos" às autoridades. Uma vez agarrados forçadamente, eles não poderiam ser atraídos. O texto claramente indica que eles foram forçados a comparecer diante das autoridades.

Uma vez fui convidado a participar de um debate formal no assunto de uma eleição num seminário arminianismo. Meu oponente era o chefe do departamento de Novo Testamento. Num ponto crucial do debate, focamos nossa atenção no Pai "atrair" pessoas a Cristo. Meu adversário apelou a João 6.44 para argumentar o seu ponto que Deus "atrai" homens a Cristo mas nunca os força a vir. Ele insistia que a influência divina sobre o homem caído se restringe à atração, que ele interpretou como significando "cortejar".

A essa altura eu o referi a Kittel e às outras passagens no Novo Testamento que traduzem a palavra elkõ com a palavra arrastar. O professor estava pronto para mim. Citou um exemplo em drama grego em que a mesma palavra é usada para descrever a ação de tirar água de um poço. Ele olhou para mim e disse: "Bem, professor Sproul, a gente arrasta água de um poço?" Instantaneamente o auditório caiu na risada com esse uso da palavra grega.

Quando os risos passaram, eu respondi: "Não, senhor, tenho de admitir que não arrastamos água de um poço. Mas como tiramos água de um poço? Será que a atraímos: ficamos em pé no alto do poço e chamamos: "aqui, vem água, água, água?"

E tão necessário Deus nos atrair, ou nos virar para Cristo, como é puxar para cima o balde para beber água do poço. A água simplesmente não virá por conta própria, não importa quanto roguemos.

A questão de atrair ou puxar precisa de mais exame. Quando o arminiano fala no atrair do Espírito, será que ele crê que a ação do Espírito é externa à pessoa ou interna? É a atração simplesmente o puxar para fora ou a força da pregação da Palavra? Ou então o Espírito Santo de alguma maneira penetra até a alma e então faz sua obra de atrair? E uma tentativa de persuasão interior? Caso seja, a ação do Espírito ainda é externa à alma porque não faz nada que seja realmente para compelir a alma.

Outras perguntas difíceis são enfrentadas por arminianos a essa altura. Duas questões importantes são as seguintes: Ia.) Deus atrai todos os homens igualmente? 2a.) Por que algumas pessoas respondem favoravelmente à força de atração do Espírito Santo?

Quanto à primeira pergunta, se Deus não atrai todas as pessoas igualmente, então todas as objeções à visão reformada de eleição incondicional precisam ser levantadas aqui também. Deus não atrai todos os homens igualmente porque alguns têm maior poder de responder do que outros? O arminiano pode responder que Deus atrai só aqueles que ele sabe que responderão favoravelmente. Sendo assim, então Deus nem tenta ganhar aqueles que nunca chegam à fé. Poucos, se é que alguns, arminianos estão dispostos a dizer isso.

A segunda pergunta é esta: por que alguns respondem favoravelmente ao Espírito Santo em vez de recusar o seu atrair? Se dizemos que a resposta está na intensidade do procurar atrair (a saber, que o Espírito seduz alguns mais fortemente do que outros), então estamos de volta ao problema da seleção soberana. Se dissermos em vez disso que alguns respondem favoravelmente à sedução por causa de algo encontrado neles, então enraizámos nossa salvação, em última análise, numa obra humana. Será que a pessoa responde positivamente à sedução em razão de maior inteligência ou maior virtude? Sendo assim, então temos algo sobre o qual nos gabar.

Quando eu coloco essa pergunta a meus amigos arminianos, eles prontamente vêem o dilema e buscam evitá-lo, dizendo: "Claro que não é uma questão de inteligência ou de qualquer virtude superior inerente naqueles que respondem positivamente. Eles respondem assim porque vêem mais claramente sua necessidade de Cristo". Com essa resposta eles cavam e se afundam mais no buraco. A resposta só adia o problema um passo.

Por que algumas pessoas vêem sua necessidade de Cristo mais claramente do que outras? Será que receberam maior iluminação do Espírito Santo? São mais inteligentes? Têm menos preconceitos contra Cristo e estão mais abertas a seu chamado, o que é em si uma virtude? Não importa como se protela, mais cedo ou mais tarde temos de enfrentar a questão de maior ou menor virtude inerente.

Seguindo a liderança de Paulo em Efésios, a teologia reformada ensina que a própria fé é um dom ofertado aos eleitos. Deus mesmo cria a fé no coração do crente. Deus mesmo preenche a condição necessária para salvação, e ele faz isso sem impor condição. Novamente olhamos as palavras de Paulo: "Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie. Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas" (Ef 2.8-10).

Muito debate tem decorrido com respeito ao sentido da primeira sentença. Qual é o antecedente ao qual a palavra isto se refere: graça, salvos ou fé? As regras de sintaxe e gramática grega pedem que o antecedente de isto seja a palavra fé. Paulo está declarando o que toda pessoa reformada afirma, que fé é um dom de Deus. Fé não é algo que fazemos aparecer por esforço próprio, ou o resultado do querer da carne. Fé é um resultado da obra soberana do Espírito da regeneração. Não é acidente que essa declaração concluía uma passagem que começa com a declaração de Paulo de que temos sido renovados "no espírito do nosso entendimento" enquanto estávamos num estado de morte espiritual.

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