quinta-feira, 25 de agosto de 2011

A Graça Restringe a Depravação Humana


Por João Calvino (1509-1564)

Ora, em todos os tempos, alguns têm existido que, guiados pela natureza, têm-se inclinado para a virtude por toda a vida. Nem levo em conta se nos costumes se possam notar neles muitos deslizes, uma vez que, pelo próprio empenho para com a honestidade, têm dado prova de que na natureza algo de pureza lhes subsistia.

De que valor se revestem diante de Deus virtudes desta espécie, embora tenhamos de discuti-lo mais plenamente onde se haverá de tratar dos méritos das obras; contudo, até onde se faz necessário à elucidação do presente argumento, também neste lugar se nos impõe falar do assunto. Portanto, estes exemplos nos parecem avisar, para que não pensemos ser de todo corrompida a natureza do homem, visto que, de sua inclinação, alguns não só excederam em sublimadas ações, mas até se conduziram com a máxima dignidade por todo o curso da vida. Contudo, aqui nos deve ocorrer que, por entre esta corrupção de nossa natureza, algum lugar há para a graça de Deus, não aquela que a expurgue, mas aquela que a coíba interiormente. Ora, se o Senhor permitisse à mente de cada um esbaldar-se de rédeas soltas em todos os desejos, sem dúvida ninguém haveria que, de fato, não propiciasse confirmação de que, mui verdadeiramente, em si concorreriam todas aquelas coisas más pelas quais Paulo condena toda a natureza [Rm 3.12].

E então? Porventura te eximes ao número desses cujos pés são velozes para derramar sangue [Rm 3.15], as mãos aviltadas em rapinas e assassinatos, a garganta semelhante a sepulcros abertos, a língua enganosa, os lábios pejados de veneno [Rm 3.13], as obras inúteis, iníquas, pútridas, letais, cuja mente é sem Deus, cujas entranhas são depravações, cujos olhos estão voltados para as insídias, o ânimo alçado para ultrajar; em suma, todas as partes engrenadas para infindas impiedades?

Se, como o declara o Apóstolo inqualificadamente, cada alma é sujeita a todas as abominações desta espécie, seguramente vemos o que haveria de ser, se o Senhor deixasse que a licenciosidade humana vagasse, conforme sua inclinação. Não há nenhuma fera raivosa que seja impelida tão desbragadamente; rio nenhum, por mais caudaloso e violento, que o desbordamento seja tão impetuoso. Em seus eleitos, o Senhor cura estes achaques na maneira que logo exporemos; nos outros, aplicado um freio, apenas os coíbe, só para que não se arrojem a extremos, até onde antevê ser conveniente para a preservação da totalidade das coisas.

Daqui, uns são contidos pelo senso de vergonha, outros, pelo temor das leis, para que não se lancem a muitas espécies de torpezas, se bem que, em larga medida, não dissimulam sua impureza; outros, porque julguem ser de vantagem uma forma honesta de viver, a ela, de certa maneira, aspiram; outros se alteiam acima da condição vulgar para que, mercê de sua própria importância, contenham os demais na linha da deferência apropriada.

E assim, mediante sua providência, Deus nos refreia a perversidade da natureza para que não irrompa em ação; entretanto, não a purifica interiormente.

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