Por Justin Taylor
Essa é uma boa e difícil questão. A
maneira como respondemos tanto refletirá quanto informará qual o nosso
entendimento de justiça e misericórdia.
A pergunta é sobre o que acontece no
livro de Josué, quando Deus ordena a Israel que massacre os cananeus, a
fim de que a Terra Prometida seja ocupada. Foi uma guerra sangrenta, com
destruição total, onde Deus usou seu povo para executar seu julgamento
moral contra seus inimigos perversos. Para avançarmos numa resposta será
útil pensar cuidadosamente sobre os tijolos que constroem uma
cosmovisão cristã em relação à justiça e misericórdia de Deus.
1. Como criador de todas as
coisas e regente de todos os povos, Deus tem os direitos absolutos de
propriedade sobre todas as pessoas e lugares.
“No princípio Deus criou os céus e a
terra” (Gn 1.1), “o mar e tudo o que neles há.” (At 14.15). Isto
significa que “Do Senhor é a terra e tudo o que nela existe, o mundo e
os que nele vivem” (Sl 24.1). Como Deus diz: “a terra toda é minha” (Ex
19.5) e “todos os animais da floresta são meus” (Sl 50.10). O fato de
Deus ser dono de tudo significa que ele é livre para fazer o que desejar
sobre todas as coisas. “O nosso Deus está nos céus, e pode fazer tudo o
que lhe agrada” (Sl 115.3). Dentro desta livre soberania, Deus
“determinou os tempos anteriormente estabelecidos e os lugares exatos em
que [cada nação] deveria habitar” (At 17.26). Deus tem direitos de
Criador, e ninguém pode lhe dizer: “O que fazes?” (Jó 9.12).
2. Deus não é apenas o criador, regente e proprietário final de tudo, mas ele é justo e reto em tudo o que faz.
Abraão perguntou a Deus a mesma questão
que fazemos: “Não agirá com justiça o Juiz de toda a terra?” (Gn 18.25).
A resposta implícita é: “Claro que sim!”. Este é o outro lado da
pergunta de Paulo em Romanos 9.14: “Acaso Deus é injusto?”. A resposta
de Paulo: “De maneira nenhuma!”. Moisés proclamará: “Ele é a Rocha, as
suas obras são perfeitas, e todos os seus caminhos são justos. É Deus
fiel, que não comete erros; justo e reto ele é” (Dt 32.4).
É um lugar-comum em nossa cultura
perguntar se foi correto ou justo algo que Deus fez. Mas se você parar
para pensar, essa questão é, na verdade, ilegítima. Simplesmente
pressupõe que nós somos os juízes; nós colocamos “Deus no banco dos réus” e o examinamos; Deus deve se conformar ao nosso senso
de justiça e retidão e equidade – se Deus passar no teste, muito bom,
mas se não, ficamos chateados e nos tornamos o acusador. Esqueça essa
ideia! Como diz Deuteronômio 32.4: “todos os seus caminhos são
justos” – por definição. Se Deus faz algo, então é justo. Pensar de
outra maneira é o ato definitivo de arrogância: usar nossa mente e
opiniões e concepções como o padrão supremo do universo.
Isto, entretanto, não impossibilita o
questionamento e a busca para se conseguir um entendimento maior.
Enquanto é definitivamente ilegítimo perguntar se os caminhos de Deus são justos ao assegurar a Terra Prometida, é perfeitamente apropriado e edificante procurar entender como os
caminhos de Deus são justos – seja em ordenado a destruição dos
cananeus, seja em outra ação. Essa é a tarefa da teologia – ver como os
vários aspectos da verdade e revelação de Deus se combinam.
3. Todos nós merecemos a justiça de Deus; nenhum de nós merece a misericórdia de Deus.
Como vimos acima, Deus é absolutamente
justo em tudo o que faz. A única coisa que cada um de nós merece de Deus
é sua justiça. Nós quebramos sua lei, nos rebelamos contra ele e seus
caminhos, e a divina justiça exige que recebamos o castigo divino na
proporção da nossa traiçoeira e desleal rebelião. Está totalmente dentro
dos direitos de Deus trazer misericórdia, mas ele não precisa trazer a
todos – ou a alguém. É também útil perceber que, na história bíblica, um
ato de julgamento sobre alguém é frequentemente um ato de misericórdia
sobre outro (por exemplo, o dilúvio foi julgamento sobre o mundo, mas um
meio de salvar Noé; as pragas foram julgamento sobre Faraó mas um meio
de libertar Israel). Da mesma forma, a destruição dos cananeus foi um
ato de misericórdia sobre Israel.
4. Os cananeus eram inimigos de Deus que mereciam ser punidos.
“Todos pecaram e estão destituídos da
glória de Deus” – “Não há um justo, nenhum sequer” – e “o salário do
pecado é a morte” (Rm 3.23, 3.10, 6.23). Portanto, se Deus destruísse
Adão e Eva após a queda ele teria sido inteiramente justo. Quando ele
apagou mais de 99,99% da raça humana durante o tempo de Noé, ele estava
sendo justo.
Algumas vezes nós pensamos erroneamente
que Deus apenas queria dar a terra a seu povo e chutou fora as pessoas
inocentes que estavam lá. Mas, na realidade, os cananeus estavam cheios
de iniquidade e impiedade, e, por essa razão, Deus fala da terra os
vomitando (cf. Gn 15.6; Lv 18.24-30; Dt 9.5). Tudo isto é consistente
com o fato de que Deus “vingará o sangue dos seus servos; retribuirá com
vingança aos seus adversários e fará propiciação por sua terra e por
seu povo” (Dt 32.43).
É também importante perceber que Dt 9.5 diz que a posse de Israel sobre a terra e a expulsão dos cananeus não
se baseava na retidão de Israel, mas seria por conta da pecaminosidade
dos cananeus. Deus deixa muito claro a Israel que, se eles não seguissem
ao Senhor e sua Lei, eles sofreriam o mesmo destino das nações
vomitadas de sua terra (cf. Lv 18.28; Dt 28.25-68; cf. também Ex 22.20;
Js 7.11-12; Ml 4.6). Deus deu seu amor eletivo especial a Israel (cf. Dt
7.6-9), mas suas ameaças e promessas de castigo pela infidelidade
demonstram sua retidão e seu comprometimento com a justiça.
5. As ações de Deus não são um exemplo de limpeza étnica.
O Pentateuco (Gênesis-Deuteronômio) provê leis para dois tipos de guerra: (1) batalhas contra cidades fora
da Terra Prometida (ver Dt 20.10-15), e (2) batalhas contra cidades
dentro da Terra Prometida (Dt 20.16-18). O primeiro tipo permitia que
Israel poupasse pessoas; o segundo tipo não. Essa prática, chamada herem
(o segundo tipo de guerra), significava “devoção/consagração pela
destruição”. Como um ato sagrado que cumpria o julgamento, está fora das
categorias que usamos para pensar sobre a guerra.
Mesmo que a destruição tenha sido
ordenada em termos de totalidade, parece haver uma exceção para aqueles
que se arrependem, voltando-se para o único Deus vivo (por exemplo,
Raabe e sua família [Js 2.9] e os gibeonitas [Js 11.19]). Isto significa
que a razão para a destruição dos inimigos ímpios de Deus era
precisamente por causa de sua rebelião, e de acordo com os propósitos de
Deus – não por causa de sua etnia. “Limpeza étnica” e genocídio
referem-se à destruição de pessoas por sua etnia, e portanto, é uma
categoria inapropriada para a destruição dos cananeus.
6. Por que foi necessário remover os cananeus da terra?
Nos EUA, falamos sobre a separação entre
“igreja” e “estado”. Mas Israel era uma “teocracia”, onde igreja e
estado estão inseparavelmente juntos e indistintos, de forma que os
membros do povo de Deus tinham obrigações políticas e religiosas. Ser um
cidadão de Israel requeria ser fiel à Aliança com Deus e vice-versa.
A comunidade da aliança exigia pureza, e
violações abomináveis significavam eliminação (por exemplo, Dt 13.5;
17.7, etc.). Isto também implicava na pureza da terra onde eles estavam
vivendo como povo de Deus, e a falha em remover os impenitentes desta
terra significava que a nação inteira seria derrubada com os rebeldes,
resultando em idolatria, injustiça e mal (por exemplo Dt 7.4, 12.29-31) –
o que, infelizmente, provou, muitas vezes, ser o caso na velha aliança.
Cristãos hoje não vivem em uma
teocracia. Nessa era, somos “estrangeiros e peregrinos” (1Pe 2.11) sem
terra sagrada. Vivemos no encontro da antiga era e a era porvir – “entre
dois lugares” (na criação que geme – após a Terra Prometida
santa-mas-temporária, e aguardando os santos-e-permanentes Novos Céus e
Nova Terra). Nesta era e lugar devemos respeitar e nos submeter às
autoridades governantes, constituídas sobre nós por Deus (Rm 13.1-5) –
mas que não são, nem deveriam ser, uma parte da igreja (o povo de Deus,
chamado e reunido para a Palavra e os sacramentos). Portanto, o dom de
Deus da revelação específica e especial para a igreja inteira agora
terminou (cf. Hb 1.1,2: “Há muito tempo Deus falou muitas vezes e de
várias maneiras aos nossos antepassados por meio dos profetas, mas
nestes últimos dias falou-nos por meio do Filho”). Esses fatores
combinados nos dão garantia de que nada como a destruição dos cananeus –
necessária para a teocracia de Israel possuir a terra física – seja
ordenada por Deus ou permissível para seu povo hoje.
7. A destruição dos cananeus é uma figura do julgamento final.
Ao fim desta era, Cristo virá para
julgar vivos e mortos (At 10.42; 2Tm 4.1; 1Pe 4.5), expulsando-os da
terra (da Terra inteira). Este julgamento será justo e será completo.
Este é o dia em que “o Senhor Jesus será revelado lá dos céus, com os
seus anjos poderosos, em meio a chamas flamejantes. Ele punirá os que
não conhecem a Deus e os que não obedecem ao evangelho de nosso Senhor
Jesus. Eles sofrerão a pena de destruição eterna, a separação da
presença do Senhor e da majestade do seu poder” (2Ts 1.7-9).
Surpreendentemente, Paulo pergunta aos coríntios algo que eles pareciam
ter esquecido, se é que sabiam: “Vocês não sabem que os santos hão de
julgar o mundo?” (1Co 6.2).
Como isso vai funcionar? Como se
parecerá? Eu realmente não sei. Mas a Palavra de Deus nos diz que o povo
de Deus será parte do julgamento de Deus contra seus inimigos. Neste
sentido, a ordem de Deus para que os israelitas levassem seu julgamento
moral contra os cananeus se torna uma sombra – uma previsão, se você
quiser – do julgamento final.
À luz disso, a terrível destruição
registrada nas páginas de Josué não se torna um “problema para
resolver”, mas um chamado para todos acordarmos – permanecermos “puros e
imaculados diante de Deus” (Tiago 1.27), buscarmos a ele e seus
caminhos, e fielmente compartilharmos o Evangelho com nosso próximo e
com as nações não-alcançadas. Como Jó, devemos desistir de colocar a
bondade e justiça de Deus em dúvida, colocando a mão sobre nossa boca
(Jó 40.4) e, ao invés disso, nos maravilhar com as riquezas e o mistério
da grande e inescrutável misericórdia de Deus (Ef 2.4). No final, nos
uniremos a Moisés e ao Cordeiro cantando esta canção de louvor:
Senhor Deus todo-poderoso!
Justos e verdadeiros são os teus caminhos,
ó Rei das nações.
Quem não te temerá, ó Senhor?
Quem não glorificará o teu nome?
Pois tu somente és santo.
Todas as nações virão à tua presença
e te adorarão,
pois os teus atos de justiça se tornaram manifestos”. (Ap 15.3,4)
Fonte: Ipródigo
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