quinta-feira, 25 de abril de 2013

A enganosa paz da ortodoxia

 
Por Ricardo Wesley Morais Borges 

Observações e registros de viagens a outras culturas e realidades podem servir como ganho de novas perspectivas e, talvez, aprendizado; claro, se estivermos realmente abertos para o desafio de analisarmos nossos próprios conceitos.

Passei por isso em uma recente visita ao castelo onde Lutero e Zwinglio se desentenderam sobre a ceia do Senhor. Na verdade, justiça seja feita, parece que eles caminharam bem até certo ponto. Discutindo sobre quinze pontos de doutrina diferentes, construíram consenso e acordo em quatorze. Mas foi no último ponto, acerca do significado da presença real de Cristo nos elementos da ceia, que uma forte, áspera e crucial diferença os fez caminhar em direções opostas. Hoje é fácil caricaturar uma e outra posição, ainda mais por estarmos longe do tempo e dos contextos em que eles viviam. Também é fato que construir entendimento sempre é mais difícil quando não sei colocar-me no lugar do outro e entender porque sua posição lhe parece tão fundamental em sua concepção de fé.

Na tal visita perguntei a meu amigo alemão (líder ativo em uma posição estratégica de um ministério que cruza as barreiras denominacionais) como vivem hoje os crentes na Alemanha à luz daquela controvérsia do passado. Para minha surpresa, ele me disse que para muitos ela não era tão importante assim. Disse também que líderes de igrejas consideradas luteranas não têm problemas em encorajar seus membros a servir em igrejas identificadas como reformadas, e vice-versa. Que isso é frequente quando se mudam para uma cidade ou região onde as igrejas da outra tradição são mais comuns. Claro, esse é um contexto particular e único, mas também desafiador, porque me recorda que em meu próprio contexto latino-americano muitas vezes diferenças “doutrinárias” menos importantes (claro, estou consciente que para muitos seria indevido chamá-las de “menos importantes”) nos levam a desmedidas divergências, facções e hostilidades.

Penso em possíveis estratégias para que, pelo menos, nos entendamos mais. Talvez a maneira como abracemos a tal “ortodoxia” esteja um pouco desfocada. Lembro-me do que disse o saudoso Dr. Martyn Lloyd-Jones (o ex-médico da realeza britânica que decidiu dedicar sua vida por completo à pregação do evangelho). Ele poderia ser criticado por outras coisas, menos pelo seu zelo com a boa ortodoxia. Mas Lloyd-Jones também reconheceu seus limites: “corremos o perigo de confiar na própria fé, ao invés de confiar em Cristo; de confiar na crença, ao invés de sermos verdadeiramente regenerados. Essa é uma terrível possibilidade”1.

Muito desafiadora essa ideia de que minha fé não deva supor que sua base segura seja uma correta construção mental. Ainda escutando o doutor: “nada é mais perigoso do que depender somente de uma crença correta, de um espírito fervoroso, e então supor que, enquanto estivermos crendo nas coisas certas e formos zelosos, aguçados e ativos acerca delas, necessariamente isso significará que somos crentes”2. Ao depositar toda nossa confiança na doutrina correta, parece que estamos mais susceptíveis ao que Lutero chamou de o “mais secreto dos vícios, o orgulho”3. Para ele, mesmo uma boa obra, por mais digna e honrosa que seja, nos leva ao orgulho se não confiamos somente na graça. Para ele, mesmo a confissão de nosso orgulho poderia nos enganar, quando nos orgulhamos por acusarmo-nos de orgulhosos. Engraçado, não? Mas verdadeiro. E me leva a pensar que igual lógica se aplica ao orgulho da ortodoxia, essa que normalmente associo com o meu próprio grupo. Se me vanglorio de meu credo, em que exatamente estou confiando?

Haveria alguma esperança no fim do túnel, ou após finais melancólicos de reuniões cruciais nos castelos de nossa história? Encontrei alguma, escutando há uns anos o testemunho de um irmão chinês, Patrick Fung, ao falar dos incontáveis cristãos que morreram por causa de sua fé, sem concílios para discutir sua fé, sem ficar famosos, sem que alguém tenha contado suas histórias. Sem nome, sem rosto, mas fiéis até o fim. Sobre eles, em seu testemunho, esse irmão que é autor do pequeno, mas bem interessante livro “Live to be forgotten” (“Viva para ser esquecido”), afirmou: “Alguns dos obreiros mais importantes no Reino, de cara ao século 21, creio eu, serão as pessoas sem nome. Elas fazem a Cristo visível, não a elas mesmas.”

Penso que as palavras do irmão Fung nos oferecem um critério simples, mas importante: se nossas discussões, formulações e doutrinas fazem com que Cristo se torne mais visível ou não. Não viverei para fazer visível a minha própria ortodoxia, nessa paz enganosa e perigosa. Viverei, se a graça me permitir, para que Cristo seja o único visível. Ou como nos foi recomendado nas especiais prescrições do médico pregador, buscarei aprender que mais vale confiar em Cristo do que em minha própria fé.

Notas:
1. Martyn Lloyd-Jones, Estudos no Sermão do Monte, (São José dos Campos: Editora Fiel, 1984), 539.
2. Ibid., 540.
3. Paul Althaus, A Teologia de Martinho Lutero, (Canoas: Ed. ULBRA, 2008), 165.
Fonte: Ultimato

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