Por J. I. Packer
A Bíblia é enfática ao dizer que o estado de pecado é absolutamente universal. É natural e inevitável que cada pessoa peque. "Pois não há homem que não peque" (1 Rs 8.46). "Todos, tanto judeus como gregos, estão debaixo do pecado... todos se extraviaram... não há quem faça o bem, não há nem um sequer... pois todos pecaram e carecem da glória de Deus" (Rm 3.9, 12, 23). "Se dissermos que não temos pecado nenhum, a nós mesmos nos enganamos, e a verdade não está em nós" (1 Jo 1.8). A Bíblia explica essa pecaminosidade universal em termos de solidariedade dos homens com Adão (cf. 1 Co 15.22; Rm 5.12 ss.). Adão, ao transgredir, tornou-se pecador por natureza. E os descendentes de Adão já nascem pecadores, e, assim, pecam por natureza. O nome tradicional daquela disposição inerente de antipatia contra Deus e contra a sua lei, que temos herdado de Adão, é pecado original — nome esse que, embora não figure na Bíblia, é muito apropriado, quer consideremos que essa disposição é herdada por nós do primeiro homem, quer pensemos que ela encontra-se em nós desde nossa concepção, ou quer achemos que todos os nossos atos de pecado se originam dela. A Bíblia intitula essa disposição de "a carne", ou "o pendor da carne" (Rm 8.7), ou simplesmente "o pecado que habita em mim" (Rm 7.20; examine os vv. 8-13). Essa atitude controla e determina a conduta de cada homem que não está em Cristo. Onde o Senhor não governa, o pecado o faz.
A descrição bíblica sobre o estado de pecado inclui estes pontos:
1. É um estado de condenação. Isso nos mostra a relação do pecador para com Deus como Juiz, bem como para com os requisitos penais de sua lei, a qual declara: "A alma que pecar, essa morrerá" (Ez 18.20). "Agora, pois, já nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus" (Rm 8.1) — à parte de Cristo, todos os homens estão sob sentença de morte, tanto devido às suas delinqüências pessoais (cf. Rm 1.32; 2.8, 9), como por causa de sua solidariedade com Adão. Assim como os crentes são justificados por causa de Cristo, por ter-lhes sido imputada a retidão dEle, assim também aqueles que não têm a Cristo são con¬denados por causa de Adão, por lhes ser imputada a transgressão dele. Isso não significa, entretanto, que eles sejam tidos como se tivessem praticado pessoalmente o pecado de Adão, e, sim, que Adão pecou representativamente, em sua capacidade pública de cabeça da raça humana, e que todos os homens estão envolvidos nas conseqüências penais de seu ato pecaminoso. A obrigação penal que nos cabe, em virtude de nossa ligação com Adão, com freqüência tem sido chamada culpa original, estando essa culpa incluída na definição do pecado original.
Em Romanos 5.12 e 15.19, Paulo desdobrou essa noção da culpa original — a idéia é que, quando um pecou, "todos pecaram", e, em razão desse ato, "tornaram-se pecadores".
2. É um estado de contaminação. Isso nos mostra a relação entre o pecador e o Deus santo. Nos dias do Antigo Testamento, Deus muito ensinou, através de vários tabus e rituais de pureza, sobre questões de higiene e de hábitos alimentares, que há coisas que tornam o homem incapaz de ter comunhão com Ele, pois contaminam o homem, tornando-o sujo e, em conseqüência, repelente e inaceitável aos olhos de Deus. Nosso Senhor eliminou e cancelou esses preceitos simbólicos, tendo dito en-faticamente que aquilo que contamina o homem não são os alimentos, mas o pecado. "Assim vós também não entendeis? Não compreendeis que tudo o que de fora entra no homem não o pode contaminar...? E assim considerou ele puros todos os alimentos. E dizia: O que sai do homem, isso é o que o contamina. Porque de dentro, do coração dos homens, é que procedem os maus desígnios, a prostituição, os furtos, os homicídios, os adultérios, a avareza, as malícias, o dolo, a lascívia, a inveja, a blasfêmia, a soberba, a loucura" (Mc 7.18 ss.). Isaías aprendera a lição há séculos. Quando ouviu os serafins proclamarem no templo a santidade de Deus, foi compelido a exclamar: "Ai de mim!... porque sou homem de lábios impuros". Ele foi forçado a reconhecer-se incapaz de ter comunhão com Deus, e, de fato, "perdido" — condenado — face a reação adversa que o Deus santo certamente demonstraria para com a sua imundícia (Is 6.3-5).
3. É um estado de depravação. Isso nos mostra a relação entre o atual estado do pecador e a imagem de Deus, na qual ele foi criado. Em essência, essa imagem era a retidão (cf. Ec 7.29). Conforme fora criado por Deus, o homem possuía uma mente conhecedora da vontade de Deus e um coração que se regozijava nessa vontade, amando-a e praticando-a. Fazia parte da natureza do homem, então, ser santo, como Deus é santo. No entanto, não é assim agora. A mente humana está entenebrecida no tocante às realidades espirituais, a sua vontade se alienou da vontade de Deus, a sua consciência é insensível à voz de Deus (cf. Ef 4.18, 19). O homem tornou-se não apenas fraco, mas tam¬bém mau aos olhos de Deus; e agora é inegavelmente perverso e ímpio (Rm 5.6). Moral e espiritualmente, o caráter do homem estampa a ima¬gem de Satanás, e não a de Deus. Ora, é precisamente isso o que a Bíblia quer dizer quando fala sobre o homem caído no pecado como "filho do diabo" (Jo 8.44; Mt 13.38; At 13.10 e 1 Jo 3.8).
Essa depravação, essa distorção da imagem de Deus, é comumente e corretamente tida como total: não no sentido que no homem tudo é tão mau quanto possa ser, mas no sentido que no homem coisa alguma é tão boa quanto deveria ser. Nada do que o homem faz é bom, nem o exercício de quaisquer de suas faculdades tem qualificação aos olhos de Deus. Até mesmo quando certos homens de moralidade "procedem por natureza de conformidade com a lei" (o que ocorre com certa fre¬qüência — Rm 2.14; cf. Mt 7.11), seus corações mostram-se errados. Cada ação deles é viciada, voltada de alguma maneira para seus próprios interesses, pois o motivo do pecador sempre é algo mais (e, portanto, sempre algo menos) do que o puro amor a Deus, a pura consideração para com a vontade de Deus e ó puro desejo por sua glória. Em cada ato humano, em algum ponto, manifesta-se sempre a corrupção. Deus, que lê o coração, vê tudo isso, mesmo quando o homem nada percebe. "Porque eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem nenhum" (Rm 7.18).
4. É um estado de incapacidade. Isso nos mostra a relação entre o pecador e Deus na qualidade de Legislador, e os preceitos de sua lei. Deus não alterou a sua santa lei, desde a Queda (e como poderia Ele fazê-lo?). Ele continua exigindo de nós um perfeito amor a Si e ao nosso próximo. Seu direito de ordenar e a retidão daquilo que Ele ordena não é afetado pela depravação de nossa natureza. O que foi afetada foi a nossa capacidade de obedecer aos seus mandamentos. Antes de cair no pecado, Adão tinha em si esta capacidade de obedecer a Deus, mas nós não a temos. Como podemos amar a Deus, se o impulso que vem do mais profundo de nosso ser é inimizade contra Ele? Para nós, isso é simplesmente impossível. "O pendor da carne é inimizade contra Deus, pois não está sujeito à lei de Deus, nem mesmo pode estar. Portanto, os que estão na carne não podem agradar a Deus" (Rm 8.7, 8). E quando Deus ordena àqueles que estão na carne que se arrependam (At 17.30) e confiem em seu Filho (Jo 6.28, 29), eles não podem atender enquanto seus corações não forem renovados (cf. Jo 3.5; 6.44; 1 Co 2.14).
Em vista disso, nossa vontade é livre? A resposta mais simples e direta é que nossa vontade é livre, mas nós mesmos não somos. Nossa vontade é livre no sentido que temos a capacidade de fazer aquilo que queremos, no campo das ações morais; mas nós mesmos, como descendentes de Adão, somos escravos do pecado (Jo 8.34; Rm 3.9; 6.16-23). Isto significa que, de fato, jamais haveremos de querer, com todo o nosso coração, fazer a vontade Deus. Portanto, em seu estado pecaminoso, o homem jamais pode agradar a Deus. A tragédia do homem jaz precisamente no fato que a sua vontade é livre e que ele tem o poder de fazer aquilo que quer e escolhe fazer; mas, aquilo que ele quer e escolhe é sempre, de alguma forma, para a autoglorificação, e, portanto, é pecaminoso e ímpio, resultando que tudo quanto o homem faz serve para aumentar a sua condenação.
5. E um estado de ira. Esse termo nos mostra a relação entre o pecador e Deus na qualidade de Rei e, como tal, Juiz (pois nos tempos bíblicos os reis eram juízes, assim como, antes da monarquia, os juízes de Israel na verdade eram reis). No Antigo Testamento, o Rei divino é um guerreiro que batalha contra seus inimigos, impulsionado pela ira, a fim de levá-los à ruína. No Novo Testamento, os pecadores são os inimigos do Rei divino (Rm 5.10) e estão sob a sua ira (Rm 1.18 ss.). O Senhor de todas as coisas, que é o Juiz de toda a terra (Gn 18.25), está agora contra eles. Ora, se Deus está contra os pecadores, segue-se que todas as coisas também lhes são contrárias. Deus governa o seu mundo, mas não para o bem dos pecadores (Rm 1.18-2.16; 1 Ts 2.14-16; Ap 6.15-17).
6. É um estado de morte. Na Bíblia, a morte e a vida não são conceitos primariamente fisiológicos. Antes, são conceitos espirituais e teológicos. A vida significa comunhão com Deus, na experiência de seu amor; a morte significa estar sem esse privilégio. Os pecadores estão num estado de morte (Ef 2.1) e não têm qualquer outra expectativa, senão a de continuarem nesse mesmo estado (Rm 6.23).
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