Por Helder Nozima
“Não julguem, para que vocês não sejam julgados” (Mateus 7.1).
“Vocês não sabem que os santos hão de julgar o mundo? Se vocês hão de julgar o mundo, acaso não são capazes de julgar as causas de menor importância?” (1 Coríntios 6.2)
Afinal: crente pode ou não julgar? Para algumas pessoas, o verdadeiro cristão é alguém que não julga. Ele sabe o que é o pecado, consegue reconhecê-lo quando ele acontece, mas ele nunca chamará outra pessoa de pecadora. Na verdade, ele sempre se mostrará compreensivo com o pecador, chegando a abrir mão da disciplina eclesiástica, pois, “quem sou eu para julgar o meu irmão?” Outros adotam uma postura mais agressiva: medem a espiritualidade das pessoas por meio de suas obras, não raro chegando ao ponto de criar uma escala espiritual dos crentes, aonde uns são santos e consagrados, e outros são mundanos e depravados. Os mais exagerados chegam até mesmo ao ponto de declarar que algumas pessoas são salvas, e outras não.
Por trás deste debate, está uma questão que é mal interpretada e compreendida nos círculos evangélicos. Afinal, o crente pode julgar? Se sim, quando e como deve ser este julgamento?
1) SIM, O CRENTE PODE JULGAR
Como protestante conservador, entendo que não existe uma parte da Bíblia mais inspirada do que outra. Não acho que os Evangelhos sejam mais inspirados do que as epístolas, ou que a teologia paulina é superior à teologia de Marcos. Ler a Bíblia com este pressuposto significa entender que um ensino dos Evangelhos é tão autoritativo como um ensino contido em uma epístola. Os que dão preferência a uma porção da Bíblia em detrimento de outra acabam com uma teologia parcial e incompleta, além de quebrarem a unidade e harmonia das Escrituras.
Inicialmente, gostaria de dizer que, em algumas circunstâncias, o cristão pode fazer julgamentos. Embora Jesus Cristo tivesse dito que Ele não julgava as pessoas (João 8.15) ou que nós não deveríamos julgar (Mateus 7.1), podemos ver vários momentos em que o Senhor Jesus emitiu juízos:
“Ai de vocês, mestres da Lei e fariseus, hipócritas! Vocês fecham o Reino dos céus diante dos homens! Vocês mesmos não entram, nem deixam entrar aqueles que gostariam de fazê-lo”. (Mateus 23.13).
“Guias cegos! Vocês coam um mosquito e engolem um camelo”. (Mateus 23.24).
“Uma geração perversa e adúltera pede um sinal miraculoso! Mas nenhum sinal lhe será dado, exceto o sinal do profeta Jonas” (Mateus 12.39).
“Bem profetizou Isaías acerca de vocês, hipócritas; ...” (Marcos 7.6).
“Respondeu Jesus: Ó geração incrédula, até quando estarei com vocês? Até quando terei que suportá-los? Tragam-me o menino” (Marcos 9.19).
“Não dêem o que é sagrado aos cães, nem atirem suas pérolas aos porcos; caso contrário, estes as pisarão e, aqueles, voltando-se contra vocês, os despedaçarão” (Mateus 7.6).
Estes versículos são apenas uma amostra de vários juízos proferidos por Jesus. Além destes, podemos achar outros, como os ais pronunciados contra Corazim, Betsaida e Cafarnaum (Lc 10.13-15), a declaração de Cristo a vários judeus que haviam crido nele, dizendo que eles eram filhos do Diabo (Jo 8.44) e várias passagens aonde Cristo diz que quem não crê nele, já está condenado (Jo 3.17-18, 36, etc).
À luz destas passagens, revela-se falso o argumento de que, baseado no ensino dos Evangelhos e no modelo de vida de Jesus, o cristão não pode julgar a ninguém. Cristo julgou a vários grupos de pessoas. Ao contrário de nossa visão suavizada acerca do Senhor, vemos que Ele, em sua ira e verdade, chamou os fariseus de “hipócritas”, disse que não deveríamos jogar pérolas a “porcos” ou dar o que é santo aos “cães”, além de considerar a sua geração como sendo “perversa”, “adúltera” e “incrédula”. Em todos estes momentos, Jesus mediu estas pessoas, achou-as em falta e emitiu um comentário ou juízo sobre eles.
No entanto, alguém pode argumentar dizendo que Jesus, devido a sua condição única de Deus-Homem, tinha o direito de julgar aos outros. Afinal, de acordo com João 5.22:
“Além disso, o Pai a ninguém julga, mas confiou todo julgamento ao Filho”.
Em outras palavras, Jesus pode julgar as pessoas porque Ele é Deus. Ele nunca faria um julgamento incorreto ou impreciso, além de ter todas as qualificações morais necessárias para ser um Juiz. Nós não teríamos esta capacidade.
Mas, apesar de nossas limitações e finitude humanas, o ensino dos apóstolos nos diz claramente que devemos emitir juízos em algumas situações:
“Apesar de eu não estar presente fisicamente, estou com vocês em espírito. E já condenei aquele que fez isso, como se estivesse presente (...) entreguem este homem a Satanás, para que o corpo seja destruído, e seu espírito seja salvo no dia do Senhor” (1 Coríntios 5.3-5).
“Mas agora estou lhes escrevendo que não devem associar-se com qualquer que, dizendo-se irmão, seja imoral, avarento, idólatra, caluniador, alcoólatra ou ladrão. Com tais pessoas vocês nem devem comer” (1 Coríntios 5.11).
“Pois tais homens são falsos apóstolos, obreiros enganosos, fingindo- se apóstolos de Cristo” (2 Coríntios 11.13).
“Mas eles difamam o que desconhecem e são como criaturas irracionais, guiadas pelo instinto, nascidas para serem capturadas e destruídas; serão corrompidos pela sua própria corrupção! Eles receberão retribuição pela injustiça que causaram. Consideram prazer entregar-se à devassidão em plena luz do dia. São nódoas e manchas, regalando-se em seus prazeres, quando participam das festas de vocês” (2 Pedro 2.12-13).
“De fato, muitos enganadores têm saído pelo mundo, os quais não confessam que Jesus Cristo veio em corpo. Tal é o enganador e o anticristo. Tenham cuidado, para que vocês não destruam o fruto do nosso trabalho, antes sejam recompensados plenamente. Todo aquele que não permanece no ensino de Cristo, mas vai além dele, não tem Deus, quem permanece no ensino tem o Pai e também o Filho. Se alguém chegar a vocês e não trouxer esse ensino, não o recebam em casa nem o saúdem. Pois quem o saúda torna-se participante das suas obras malignas” (2 João 7-11).
Vemos portanto que três apóstolos, Paulo, Pedro e João julgaram a pessoas em seu tempo. Na verdade, é impossível cumprir alguns mandamentos sem que se avaliem as pessoas. Paulo disse que não devemos nos associar a quem diz que é cristão, mas é imoral, avarento, idólatra, entre outros. Para que eu obedeça a este mandamento, preciso olhar para a vida do cristão e ver se ele incorre em algum destes erros. João diz que não devemos nem saudar aqueles que negam a encarnação de Jesus e os hereges que vão além do ensino de Cristo. De igual modo, para que eu obedeça à instrução de João, devo julgar a meus semelhantes cristãos.
O bom senso também nos mostra que fazemos julgamentos o tempo todo. Na hora de escolher um pastor, presbítero ou diácono, nós devemos julgar o caráter do candidato à luz das exigências bíblicas (Tt 1 e 1 Tm 3) e ver se ele é aprovado para a liderança da Igreja. Quando convidamos alguém para pregar, também examinamos a vida e o ensino do pregador, pois, caso ele seja um herege, entregar-lhe o púlpito significa causar transtornos à Igreja de Cristo.
Vemos também, à luz destes versículos, que a disciplina eclesiástica também é uma ordenança divina. O próprio Senhor Jesus nos dá base para a exclusão de membros em Mateus 18.17:
“Se ele se recusar a ouvi-los, conte à igreja; e se ele se recusar a ouvir também a igreja, trate-o como pagão ou publicano”.
2) COMO JULGAR E COMO NÃO JULGAR AS PESSOAS
Esclarecido, pois, este primeiro ponto, precisamos analisar agora como as pessoas devem ser julgadas.
Olhando para o exemplo de Jesus, vemos que os religiosos que não vivem aquilo que pregam são dignos de julgamento. Os fariseus foram criticados por Jesus por serem hipócritas. Eles, por exemplo, davam o dízimo de temperos, mas negligenciavam a justiça, a misericórdia e a fidelidade (Mt 23.23). Jesus também condenou os fariseus por sua doutrina distorcida (Mt 23). Olhando para os evangelhos, também vemos que os fariseus eram pessoas que impediam o acesso de outros pecadores ao caminho da salvação (Mt 23.13), orgulhosas acerca de sua fé (Lc 18.9-14) e resistentes ao ensino de Jesus, chegando até mesmo a atribuir as obras de Jesus ao próprio Satanás (Lc 11.14-15).
Jesus também julgou a sua geração por querer tentar a Deus, pedindo um sinal. Na verdade, a multidão não queria acreditar em Jesus, eles não tinham fé. Pela mesma razão, Jesus teve vários embates com a multidão ao longo do Evangelho de João. Jesus apontava o pecado da incredulidade para aqueles que se recusavam a admitir suas falhas. O Senhor também julgou os "cães" que rejeitam o seu Evangelho, chegando a dizer que não deveríamos lhes atirar as nossas pérolas (o Evangelho).
Os pecadores resistentes, aqueles que se recusam a admitir o seu pecado (como Ananias e Safira ou os fariseus), os hereges que não aceitam correção (como os falsos apóstolos descritos por Paulo), os que se fazem passar por irmãos, mas não o são (os fariseus e os homens com os quais não devemos nos associar), os imorais que não se arrependem de seu erro e continuam a praticá-lo (o caso de disciplina mostrado em 1 Coríntios 5), todos estes são exemplos de pessoas que são passíveis de julgamento.
Mas não devemos condenar os pecadores que reconhecem seu erro e se arrependem. A adúltera apresentada a Jesus (Jo 8.1-11), o publicano Zaqueu (Lc 19.1-9) e a pecadora que ungiu os pés de Jesus (Lc 7.36- 50) são exemplos de pessoas que foram julgadas pelas pessoas que os cercavam, mas que não foram julgadas por Jesus. Tratavam-se de pecadores que estavam buscando o arrependimento, corações que tinham sede de Jesus e que não foram resistentes ao Evangelho. O pecador que sabe a gravidade de seu pecado e que está lutando para abandoná- lo e se aproximar de Deus, deve ser acolhido.
Jesus também não julgou os pecadores que ainda não tiveram a oportunidade de aceitá-Lo ou rejeitá-Lo. Ele andava com os publicanos e pecadores (Mt 9.10), provavelmente evangelizando-os. O pecador que não participa da Igreja e que não rejeitou definitivamente o Evangelho deve ser evangelizado, e não condenado. Sobre isso, vale a pena ler 1 Coríntios 5.12, que dá a entender que não devemos julgar aqueles que estão fora da Igreja:
“Pois, como haveria eu de julgar os de fora da igreja? Não devem vocês julgar os que estão dentro?”
Isso não quer dizer que não devemos falar para os incrédulos sobre os seus pecados. Ao contrário, toda evangelização séria mostrará, com clareza, que todos somos pecadores e merecedores de uma condenação eterna. Mas isso não nos dá o direito de condená-los, a nossa primeira preocupação deverá ser a de evangelizá-los, e, caso eles não aceitem o Evangelho, deixá-los e pregar o Evangelho a outros incrédulos (Mt 10.11-16).
Aquele que julga também deve ser uma pessoa de moral. Caso contrário, ela estará desqualificada para fazer qualquer julgamento:
“Por que você repara no cisco que está no olho do seu irmão, e não se dá conta da viga que está em seu próprio olho? Como você pode dizer ao seu irmão: Deixe-me tirar o cisco de seu olho, quando há uma viga no seu? Hipócrita, tire primeiro a viga do seu olho, e então você verá claramente para tirar o cisco do olho do seu irmão” (Mt 7.3-5).
“Portanto, você, que julga os outros é indesculpável; pois está condenando a si mesmo naquilo em que julga, visto que você, que julga, pratica as mesmas coisas” (Rm 2.1).
Um adúltero não pode disciplinar outro, um ladrão não pode disciplinar outro ladrão, e por aí vai. Antes de alguém querer julgar a seu semelhante, convém recordar Mateus 7.2, que diz que:
“Pois da mesma forma que julgarem, vocês serão julgados; e a medida que usarem, também será usada para medir vocês”.
Uma última palavra deve ser dita. Condenar a alguém não significa tripudiar sobre a pessoa, nem caluniá-la ou ficar fofocando sobre o pecado alheio. Em Mateus 12.20, lemos que Jesus “não quebrará o caniço rachado e não apagará o pavio fumegante”. Jesus não foi enviado para condenar o mundo, mas sim para salvá-lo (Jo 3.17), e nem mesmo o arcanjo Miguel fez acusações injuriosas contra Satanás (Jd 9). A disciplina eclesiástica ou a condenação de alguém são eventos que devem despertar em nós tristeza e pesar, e não fofocas ou prazer. Se vemos que alguém está se desviando do Evangelho ou pregando heresias, o nosso objetivo principal deve ser conduzir o pecador ao arrependimento e a restauração. Caso a disciplina seja indispensável, ela deve ser feita com seriedade, amor e tristeza, sempre objetivando o arrependimento, e não a condenação eterna do pecador. E com muito temor também, afinal, não somos pessoas perfeitas e ninguém deve ser julgado ou condenado injustamente.
Espero que este estudo possa nos ajudar a entender melhor a questão da disciplina e possa nos dar uma visão bíblica e equilibrada sobre esta delicada questão que é a de julgar os outros.
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