Por Mizael Reis
Se
existe uma questão discutida na teologia reformada cuja longevidade
parece-nos não ter fim, é a conciliação que se procura fazer entre a
redenção particular e o querer de Deus em desejar que todos os homens se
arrependam e sejam salvos. Confesso que, só de escrever tal coisa, me
envolve a clara convicção de que tal conciliação não me parece ser
possível, posto que, a meu ver se contradizem claramente, ou ainda, faz
com que o desejo e as palavras de Deus se contradigam. Sei que tal tema é
de arquear as sobrancelhas, e sei que serão muito mais levantadas pela
forma com a qual tratarei a questão. Contudo, muitos de nós vivemos com
mistérios, os quais nós chamamos de paradoxos. A interpretação
tradicional sustenta sua crença resignadamente admitindo humildemente o
paradoxo da questão. Eu também admito certo grau de mistério na forma
como eu, e alguns poucos teólogos enxergamos o problema proposto. Mas
permanecerei crendo neste mistério do que render-me ao outro. Um direito
que me assiste. Sei que para os reformados que discordam da crença de
que Deus deseja que todos os homens se arrependam, essa visão é
amplamente comprometedora, da qual fluem algumas outras inconsistências.
Eu, porém, no presente artigo ater-me-ei a questão do inclusivismo.
Creio
que se defendermos a crença de que Deus, embora eleja alguns da raça
caída para salvação, deseja que todos os homens sem exceção sejam
salvos, tal visão, a meu ver, desaguará em duas crenças, das quais uma
antes era raramente defendida mas encontra terreno amplo atualmente, e a
outra é defendida por um considerável número de reformados. A primeira é
o inclusivismo que será tratado nessa primeira postagem, e a segunda é a
expiação ilimitada que se opõe a redenção particular que será tratada
em um artigo posterior.
Analisemos
primeiramente o inclusivismo. Antes, uma sintética definição do
inclusivismo se faz necessária. O inclusivismo diz que Deus salva
pessoas por meio de Cristo, a sua revelação especial e tais pessoas
constituem-se em povos cujas terras o evangelho já alcançou. Porém,
existem pessoas, habitantes de terras nas quais o evangelho ainda não
foi anunciado, e por essa razão, muitos têm morrido sem que pudessem
ouvir a mensagem do evangelho. Deus, em sua infinita misericórdia, a fim
de oportunizar a salvação a estes, provê outros meios além da revelação
especial para salvá-los. Tais meios constituem-se em outras formas de
se “crer em Deus” de uma forma “justa”, sincrética e moralmente
conciliatória com o cristianismo. Assim o chamado “problema
soteriológico do mal” é resolvido, respondendo a complexa [para alguns]
pergunta que se segue: Como Deus salva os não evangelizados? O
inclusivista responde: Por outros meios [religiões, natureza, conduta de
ética semelhante a cristianismo], pois eles não conhecem a Cristo, e
destiná-los ao inferno sem que antes possam ter tido a oportunidade de
crer no verdadeiro Deus é no mínimo inconciliatório com a crença num
Deus cuja natureza é amor. Por mais que para muitos, tal tema nada possa
contribuir ou convergir para a discussão em apreço, analisemos a minha
tese. Primeiro relembremos o versículo-chefe dessa discussão:
“Desejaria
eu, de qualquer maneira, a morte do ímpio? diz o Senhor DEUS; Não
desejo antes que se converta dos seus caminhos, e viva?” [Ezequiel 18.23]
Retoricamente
Deus pergunta se porventura ele se compraz na morte do ímpio. Creio que
a chave para compreendermos tal versículo está contida no verso 31:
“Lançai
de vós todas as vossas transgressões com que transgredistes, e
fazei-vos um coração novo e um espírito novo; pois, por que razão
morreríeis, ó casa de Israel?” [ v.31]
A
quem tal pergunta foi direcionada? A qual povo tal exortação foi
estendida? A todos os povos? Evidente que não, mas à Israel somente.
Agora reflitamos. Se Deus não deseja que o ímpio pereça, e se por ímpio
entendermos todos os ímpios, indistintamente e sem exceção a povoarem o
planeta - leve em conta os que povoavam o mundo no tempo dessa mensagem -
a enumerar todos os ímpios da terra, e se entendermos assim, e
interpretarmos a ocorrência dessa palavra, pela qual Deus demonstrou um
desejo semelhante dessa forma, não haveria uma inconsistência em Deus,
de querer a salvação de todos os ímpios, mas ao mesmo tempo, expressar
tal desejo unicamente à Israel por meio da mensagem que só a eles foi
transmitida? Sabemos que no tempo que antecedeu a plenitude dos tempos,
Deus ocultou sua graça a todos os povos, revelando-a seletivamente à
Israel, e isso é o que entendemos por abrangência do evangelho do NT, em
detrimento da seletividade da eleição no AT, onde nesta a salvação foi
claramente restringida por Deus somente ao seu povo, Israel. Por essa
razão não me admira o fato de, por exemplo, haver 159 ocorrências da
palavra misericórdia somente nos salmos, quase sempre ditas e contidas
numa súplica, e todas elas terem sido feitas por lábios israelitas, e
não por povos por Deus rejeitados. Algumas passagens ajudam-nos a
compreendermos a restritividade de Deus no AT, como o que se segue:
“Que
naquele tempo estáveis sem Cristo, separados da comunidade de Israel, e
estranha às alianças da promessa, não tendo esperança, e sem Deus no
mundo”. [Ef 2.12]
O
texto acima é claro, ao ponto de distanciar-nos de quaisquer
interpretações que não se alinhem à seguinte conclusão: Deus privou
povos no AT de conhecerem o seu nome e por ele serem salvos.
Na
verdade, existem passagens no AT, pelas quais Deus revelou-nos o seu
desejo futuro de abrigar outros povos além, de Israel, ao grande reduto
do evangelho, a ser revelado de igual modo no tempo futuro. À Israel
Deus disse:
“O
SENHOR não tomou prazer em vós, nem vos escolheu, porque a vossa
multidão era mais do que a de todos os outros povos, pois vós éreis
menos em número do que todos os povos;” [DT 7.7]
No
Início do capítulo no qual o verso acima está incluído, Deus diz que
dará as terras de nações estranhas ao seu povo escolhido. Deus ordena a
destruição desses, tal como destruiu os homens em tempos diluvianos,
valendo-se da mesma justiça que lhe compete. Em seguida, Deus fala-lhes
sobre a eleição com a qual foram contemplados, e cuja qual as outras
nações, chamadas por Deus de estranhas, não receberam. O que parece mais
coerente dizer sobre o paradeiro dos que Deus não se revelou? Ou seja,
qual foi o destino das nações as quais Deus não se propôs se revelar a
elas? Salvação? Mas como poderíamos supor tal coisa, posto que, no NT
Deus diz ter rejeitado tais nações, como se pode concluir no verso
abaixo?
“Que
naquele tempo estáveis sem Cristo, separados da comunidade de Israel, e
estranha às alianças da promessa, não tendo esperança, e sem Deus no
mundo”. [Ef 2.12]
Ou ainda, pelo texto abaixo:
“Vós,
que em outro tempo não éreis povo, mas agora sois povo de Deus; que não
tínheis alcançado misericórdia, mas agora alcançastes misericórdia” [1 Pe 2.10]
Essa
é a magnitude do evangelho em relação o tempo da Lei. Neste, Deus
resgatou pra si, um único povo, de uma única língua e raça, a fim de
torná-lo sua propriedade, e por ela ser glorificado, acima e diante de
outras nações, cada qual com seus respectivos deuses. É certa que Deus
pregou a povos estranhos como a Nínive. Porém, isso se constitui, a meu
ver, numa exceção de prerrogativa divina, da qual não podemos inferir
uma regra. Pois a própria realidade a eximiria, bem como os versículos
que a sustentam. Deus não quis salvar todos os povos antes do evangelho.
Tal ato de misericórdia estava reservado, por Ele mesmo, para a
revelação do evangelho. É fato que no tempo do AT Deus restringiu-se,
decretatoriamente, a revelar-se somente a Israel, como se vê, claramente
no texto abaixo:
“Porque
és povo santo ao SENHOR teu Deus; e o SENHOR te escolheu, de todos os
povos que há sobre a face da terra, para lhe seres o seu próprio povo.” [DT 14.2]
Ou pela pena de Amós:
“De todas as famílias da terra só a vós vos tenho conhecido; portanto eu vos punirei por todas as vossas iniqüidades.” [Am 3.2]
Mesmo
podendo recorrer a outros versículos, por meio dos quais tal conclusão
se enrobusteceria mais e mais, atenho-me aqui, para fazer uma pergunta:
Como Deus pode desejar a salvação de todos os homens, e, por
conseguinte, não desejar a morte dos ímpios, e isso sem exceção, se Ele
mesmo foi quem se propôs a revelar-se privadamente a Israel, e dele,
resgatar o seu povo exclusivo? Como poderíamos conciliar a interpretação
mais popular de Ezequiel 18.23 com o fato inconteste de que o próprio
Deus não se revelou a todos os povos no antigo testamento, banindo-os a
condenação? É como diz Paulo, tais povos [nós, gentios] eram sem Deus no
mundo, e ele diz isso aos gentios, esclarecendo-os de que em tempos
pregressos ao do evangelho, eles não tiveram a oportunidade que hoje
gozam, de serem salvos. Isso porque Deus não quis, e nisso consiste a
grandiosidade do tempo do evangelho em relação ao tempo da lei. Neste,
Deus salvou um povo, de uma única língua e raça. Naquele, Deus pretende
salvar muitos homens. Não apenas de um povo, mas de todo povo, de toda
raça, tribo e língua. No AT, vemos uma promessa futura, na qual Deus
promete aumentar as cercas que delimitam sua provisão misericordiosa às
demais nações:
“E
farei tremer todas as nações, e virão coisas preciosas de todas as
nações, e encherei esta casa de glória, diz o SENHOR dos Exércitos.” [Ag 2.7]
“Todas as nações que fizeste virão e se prostrarão perante a tua face, Senhor, e glorificarão o teu nome.” [Sl 86.9]
Assim, compreendemos terminantemente a áurea promessa do derramamento do Espírito Santo, a ser derramado em todas as nações:
“E
há de ser que, depois derramarei o meu Espírito sobre toda a carne, e
vossos filhos e vossas filhas profetizarão, os vossos velhos terão
sonhos, os vossos jovens terão visões.” [JL 2.28]
No
evangelho, os salvos não são chamados de uma única nação, senão de
todas as nações serão recolhidos e comporão o povo exclusivo de Deus.
Mediante
a prova bíblica, tal verdade é irrefutável. As Escrituras são
sobejamente claras. Foi Jesus quem disse que, a pregação do evangelho é
estendida a todas as nações: “Mas importa que o evangelho seja primeiramente pregado entre todas as nações”
[Mc 13.10] Os profetas, porém, em tempos de Israel foram revestidos por
tal alçada mundialmente englobadora? Não, não foram. Senão vejamos: A
palavra de Jeremias foi essa: “Ouvi a palavra que o SENHOR vos fala a vós, ó casa de Israel.” [Jr 10.1] A Missão de Ezequiel foi de igual modo restritiva à casa de Israel: “E dize ao rebelde, à casa de Israel: Assim diz o Senhor DEUS: Bastem-vos todas as vossas abominações, ó casa de Israel!” [Ez 44.6]. Amós não foi diferente: “Porque assim diz o SENHOR à casa de Israel: Buscai-me, e vivei.” [Am 5.4]. Por essas bases poderemos compreender por qual razão em “tempos passados [Deus] deixou andar todas as nações em seus próprios caminhos” [At 14.2]
Diante
do que disse, não há possibilidade de sustentar a crença de que Deus
deseja que todos os homens se salvem, visto que ele mesmo não quis que
tal coisa acontecesse, a menos, e ai chego ao cerne da proposta do
artigo, que se creia que Deus deseja que todos os homens sejam salvos, e
para atingir tal propósito, ou ainda justificar tal querer, se creia
que Deus provê meios diferentes para a sua salvação, meios que se
somarão à mensagem da revelação especial, cuja qual muitos povos a
desconhecem. Vejamos um exemplo. Das nações rejeitadas por Deus no AT,
encontram-se os egípcios. A tenda da congregação não chegou até eles,
eles não possuíam a arca, que simboliza a presença de Deus, e sequer
entraram no templo da Glória de Deus, para nele o devotarem culto.
Reflita nisso ao lado da leitura do texto chave da questão:
“Desejaria
eu, de qualquer maneira, a morte do ímpio? diz o Senhor DEUS; Não
desejo antes que se converta dos seus caminhos, e viva?” [Ezequiel 18.23]
Esse
texto compreende tal nação? O querer de Deus envolve-os? Se não, como
Deus não deseja que o ímpio egípcio não morra, se a mensagem contida no
texto acima, não lhes foi direcionada, senão aos Israelitas? Eles sequer
souberam dessa mensagem. Sequer ouviram-na pelo profeta. Eram como diz
Paulo “Sem Deus no mundo” [Ef 2.12]
A
meu ver, a única solução para essa questão, embora a Escritura não a
ratifique [Assim creio, por ser restritivista] é o inclusivismo. A única
forma de afirmar que Deus deseja que todos os homens sejam salvos, será
conciliar tal coisa com uma crença na qual Deus procure oportunizar a
salvação a todos indistintamente e tal crença consiste no Inclusivismo.
Isso não é universalismo. O universalismo é determinista, pois diz que
Deus inevitavelmente salvará a todos. O inclusivismo, ao contrário, diz
que Deus faz a salvação ser potencialmente possível a todos os povos,
mesmo aos que estão além dos marcos do seu povo, havendo ainda a
possibilidade de condenação. Mas ninguém será condenado, sem que antes
não tenha tido a clara oportunidade dada por Deus de se converter. E
essa é a única visão com a qual se poderá afirmar categoricamente que
Deus não deseja que nenhum ímpio seja condenado ao inferno. Afirmar que
Jesus é o único caminho que nos conduz a salvação, ao lado da afirmação
de que Deus deseja que todos os homens sejam salvos, inclusive os que
morreram sem terem sequer ouvido o nome de Jesus, nas terras onde,
muitos ainda morrerão sob tal condição, é expor Deus a uma visão mais
turva e nublada da qual se acarretará implicações ainda mais
desastrosas.
Concluindo,
creio que a crença de que Deus deseja que todos os homens sem exceção
se salvem redundará sem sombra de dúvida no Inclusivismo, a única linha
teológica que afirma estar a salvação cabalmente ao alcance de todos os
homens no mundo, e que sempre esteve, a despeito da ausência de Jesus
Cristo.
Na próxima postagem tratarei do tema e sua conexão inevitável com a expiação ilimitada.
Graça e Paz
Mizael Reis
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