quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

O diabo do homem faz a Bíblia falar


“E viu a mulher que aquela árvore era boa para se comer, e agradável aos olhos, e árvore desejável para dar entendimento; tomou do seu fruto, e comeu, e deu também a seu marido, e ele comeu com ela”. (Gênesis 3.6, ênfases minhas)
Todos conhecemos o relato da tentação. Nele lemos ter o diabo sugerido a Eva que o fruto proibido daria um conhecimento tal que não se tinha domínio. Deus, ainda segundo o diabo, omitiu conhecimento, poder e domínio que agora tinham o seu desvelamento tornados possíveis seguindo os rastros indicados pela serpente. Eva, então, viu, desejou e tomou para si o fruto, e o deu a seu marido. O conhecimento veio, mas não do modo como desejaram.

Quando era pastor em uma igreja aqui em São Paulo, durante a reunião com o grupo de jovens, um deles perguntou: “Pastor, por que a Bíblia não fala nada sobre grandes temas da humanidade?”. Perguntei “Quais temas?”. O jovem disse: “A construção das pirâmides, o advento de Hitler…”.

A Bíblia, o texto sagrado dos cristãos, deveria ser usada somente para anunciar a salvação da alma. A mim parece ser este o eixo natural, o tema central já em Gênesis que segue até ao Apocalipse. O assunto da Bíblia é a salvação por causa da Queda descrita acima, e esta salvação é realizada em Jesus, que é amplamente anunciado em suas páginas.

Assim, o texto da Bíblia tem sua maior concentração nos assuntos pertinentes a salvação. Para o autor divino (Yahweh) e os autores humanos (sacerdotes, apóstolos, profetas e outros), a “humanidade” a quem a Bíblia se dirige, é a humanidade toda. A Bíblia registra grandes temas relativos à humanidade. Em outras palavras, todas as coisas necessárias ao conhecimento humano (eventos, histórias, pessoas, testemunhos etc.) e inerentemente relevantes ao universo religioso judaico-cristão, estabelecido e permanente há pelo menos seis mil anos, estão contidos na Bíblia.

No entanto, do Iluminismo para cá, a Bíblia tem sido atacada de todas as formas, usada indevidamente, acusada de todos os crimes, recusada por todas as declarações que faz. Mas ela está aí, aumentando a sua presença, sendo traduzida para novos idiomas e dialetos e sendo exportada para culturas que antes a rejeitavam.

Os ataques contra ela parecem não ameaçá-la: ninguém há que ofereça substituto ao modelo de salvação da alma humana como a Bíblia. Acusá-la de imprecisão científica? A Bíblia não é um livro de ciências; é um livro que trata da salvação, como disse. Ela tem erros nas informações geográficas? Seu assunto é a salvação. Há imprecisão historiográfica? Ela se ocupa da alma humana. Essas acusações não dizem respeito ao seu “negócio principal” e ela não faz concessões: seu foco é a salvação do pecador perdido.

Se o empenho do Iluminismo e da modernidade não afetaram a credibilidade da Bíblia, a outras correntes mais modernas ela parece ter envelhecido; sua proposta precisava de uma repaginada.

Com lentes inadequadas para enxergar as propostas anunciadas por seus autores supracitados, novas abordagens foram aplicadas na leitura do texto bíblico para “readequá-la” a mente moderna. Resumidamente, num continente impregnado pelo racionalismo cientificista, o programa de demitologização dos teólogos liberais não sobreviveu até aos nossos dias. Ela não abriu mão de suas histórias, ainda que parecessem míticas.

Já nos Estados Unidos, o próprio berço de ouro deu ocasião a aplicação de uma abordagem capitalista e consumista, para que ela falasse a linguagem do mercado; e foi criada a pobre Teologia da Prosperidade (e da saúde do corpo).[1]

Na América Latina, quando a massa pobre era a regra no continente, uma leitura libertária da Biblia (ou ao menos de alguns textos específicos), deu ocasião, primeiramente no seio da Igreja Católica e mais recentemente no meio evangélico, a Teologia da Libertação. Quiseram que a Bíblia declarasse sua opção pelos pobres, já que eram muitos. Quando conjunturas econômicas mais favoráveis avançaram, os evangélicos importaram dos Estados Unidos o que havia sobrado da Teologia da Prosperidade, seduzindo-a a prometer vida mansa, tal qual um gênio da lâmpada.

E assim a Bíblia tem sido sequestrada e usada para fins outros. No cativeiro da cultura onde é feita refém, quem se aproxima dela com concepções ou conveniências próprias usam-na para fazê-la falar o que querem ouvir, o que é agradável aos olhos e o que é desejável entender. Tal qual o diabo fez, toda tentativa de fazer ou usar a Bíblia para uma finalidade estranha ao seu sentido particular, é uma tentativa diabólica. Esses não terão parte na árvore da vida (Ap 22.19), a qual é destinada a quem perseverar.

Em todos os casos, a Bíblia sobreviverá a cada um de nós preservando em suas páginas a mensagem para a qual foi planejada e escrita. E que bom que tem sido assim, que ela viva por si, até mesmo sem essa minha defesa.

NOTAS 
[1] Health and Wealth Gospel (Evangelho da Saúde e Prosperidade), Faith Movement (Movimento de Fé), Faith Prosperity Doctrines (Doutrinas da Fé e Prosperidade) ou Positive Confession (Confissão Positiva).

Fonte: Napec

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