Por Jorge Fernandes Isah
Ultimamente,
tenho visto muitos ataques à doutrina Calvinista, contudo, ela não
parte das fileiras que normalmente se lha opõem, como os arminianos,
universalistas, humanistas, deístas, e mais um leque abrangente de
detratores das doutrinas da graça, inclusive, incrédulos. Ela parte, e
de uma maneira mais virulenta e até mesmo vergonhosa, de nossas próprias
fileiras: os calvinistas. Mas, por que?
Tenho
lido muita coisa e meditado um bocado sobre as várias trincheiras que
têm-se aberto em nosso meio. A maioria delas vem equipada com a alegação
de falsa espiritualidade, ignorância bíblica ou pseudo-intelectualismo;
e de que o Calvinismo, que muitos alegam defender, não passa de
radicalismo, extremismo teológico ou pura bufonaria. Afirmar, por
exemplo, que Deus determina todas as coisas, inclusive o mal e o pecado,
pode render-lhe o rótulo de hipercalvinista, racionalista ou, até
mesmo, de herege. Nesse rol tem-se colocado, injustamente, teólogos e
pastores como John Gill, Gordon Clark, Vincent Cheung, McGregor Wright,
W. Crampton e outros. E o que tentarei mostrar é que, João Calvino, está
entre eles, certamente com muito mais talento, mas não mais inspirado
nem bíblico; se não em todas as questões doutrinárias, ao menos na
legítima alcunha de cristão [na verdade, não serei eu a provar, mas o
próprio reformador o fará].
Mantive-me
afastado dessa polêmica por mais de um ano, exatamente por pensar que,
como muitos afirmaram, sou imaturo, ingênuo ou impulsivo, que não tenho o
hábito da meditação, e de que sou um péssimo leitor. Vá lá, pode ser
que algum ou todos estes adjetivos se encaixem mesmo em mim. Por isso,
adotei a prudência e o silêncio, e o estudo sistemático, sobretudo das
Institutas de Calvino. E são exatamente elas que me fazem abandonar o
silêncio, ainda que momentaneamente. Cada vez mais me certifico de que o
reformador, em nada ou muito pouco, crê diferentemente do que creio, e
do que vi, primeiramente, na Escritura Sagrada, ao contrário do que
tentaram me convencer. E, por que relato isto, agora? Porque, via de
regra, os calvinistas sempre apelam para Calvino como o juiz em aspectos
doutrinários e teológicos. Nenhum de nós o considera infalível, mas
muitos, sem perceberem e aceitarem, já o canonizaram inconscientemente. O
que me levava sempre a ouvir: "Calvino não propôs isso!", "Calvino não
disse isso!", "Isso não é Calvinismo!"... Ao ponto de, alheio ao
reformador, solicitar a investigação de versos e trechos bíblicos como
prova, e ser simplesmente ignorado. É algo que realmente não consigo
entender, por que muitos Calvinistas dão tão pouca atenção à revelação
que o próprio Deus fez de si mesmo e da sua obra; como se ela fosse
hermeticamente acessível apenas a alguns "iluminados" e letrados ou não
fosse relevante para o debate em questão [o qual muitas vezes se prende
apenas a aspectos filosóficos, acadêmico, enquanto as provas bíblicas
são relegadas a um segundo, terceiro ponto, ou simplesmente
desprezadas]. O que me levou, muitas vezes, a cogitar a minha completa
incapacidade de entender o Cristianismo, e de me resignar à
incompreensão, afastando-me do grupo de "iluminados" e a viver o meu
mundinho medíocre. De certa forma, penso que este pode ser o meu futuro,
mas ainda não o é [ao menos, não o aceitei ainda], mesmo vislumbrando
nele um ambiente mais pacífico e salutar.
O
fato é que não há unanimidade entre calvinistas, o que é normal, dada a
inconstância humana, mas penso que estão a construir qualquer coisa
menos doutrinas sólidas e fundamentadas na Palavra de Deus... e, também,
em Calvino. A maioria dos calvinistas desconhece o pensamento do
reformador. Outro tanto, nunca leu nada diretamente escrito por sua
pena. E penso que há um outro grupo ainda dos que têm medo de repetir o
que ele disse e formulou, com o temor de represálias. Há, é claro,
aqueles que não entenderam ou se desviaram daquilo que o reformador
escreveu, e preferiram moldar-lhe o pensamento ao seu próprio juízo; de
discípulos passaram a mestres, renegando-o. E esses são, via de regra, a
maioria do que encontramos em literatura, púlpitos, seminários e bancos
de igrejas [calvinistas, quero dizer].
Para a minha surpresa, após iniciar a leitura das Institutas, verifiquei que, ao contrário do que eu imaginava, não eram os "iluminados" que estavam certos, mas eu, em minha ignorância e estultice, estava mais certo do que eles. Por isso, decidi-me, pela segunda vez apenas, publicar um texto aqui no Kálamos que não seja meu, mas de Calvino. Poderia gastar páginas e páginas reproduzindo-o aqui, para confirmar muito do que eu disse anteriormente e que foi dado por insano e precipitado pelos entendidos, mas, se alguém quiser mesmo compreender o reformador terá de lê-lo; que vá às suas obras e aprenda por si mesmo.
Com
isso, não digo que ele seja a última palavra em qualquer coisa, afinal,
a Escritura é! O que ele fez durante décadas foi formatar, de maneira
inteligível, tudo o que Deus nos deixou em sua palavra: as preciosas e
benditas doutrinas da graça. Igualmente, não estou a afirmar sua
infalibilidade e inerrância, porque tenho as minhas discordâncias, e, em
alguns pontos, ele parece se contradizer também. Mas no que concerne à
soberania de Deus, por exemplo, não há o que se discutir. Apelar para o
"mistério", "paradoxo", "Deus permite", e coisas do gênero, não fazem
parte da sua cartilha [1]. Ele dá nome aos bois; e não o considero menos piedoso, reverente, prudente e temeroso por isso.
Ainda
estou no Vol. I, quase ao seu final, e, reproduzirei, a seguir, parte
do texto em que ele trata da providência divina. Deixarei que fale por
si mesmo; e se alguém apelar para ele, que o faça dentro do que
escreveu, sem editá-lo, ou conformá-lo a um outro tipo de pensamento... É
possível que alguém se assuste e o rejeite, mas é melhor assim do que
se submeter ao suposto dito que nunca foi dito.
Quem tem ouvidos, ouça... ou melhor, quem tem olhos, leia, não a mim, mas a Calvino.
Quem tem ouvidos, ouça... ou melhor, quem tem olhos, leia, não a mim, mas a Calvino.
CAPITULO XVIII
DEUS DE TAL MODO USA AS OBRAS DOS ÍMPIOS E A DISPOSIÇÃO
LHES VERGA A EXECUTAR SEUS JUÍZOS, QUE ELE PRÓPRIO
PERMANECE LIMPO DE TODA MÁCULA
1. EFICIÊNCIA, NÃO PERMISSIVIDADE, É A RELAÇÃO DE DEUS PARA COM A
AÇÃO DOS ÍMPIOS
Uma
questão mais difícil emerge de outras passagens, onde se diz que Deus, a
seu arbítrio, verga ou arrasta todos os réprobos ao próprio Satanás.
Pois o entendimento carnal mal pode compreender como, agindo por seu
intermédio, Deus não contraia nenhuma mácula de sua depravação; aliás,
em uma ação comum, seja ele isento de toda culpa, e inclusive condene,
com justiça, a seus serventuários. Daqui se engendrou a distinção entre
fazer e permitir, visto que esta dificuldade a muitos
pareceu inextricável, ou, seja, que Satanás e todos os ímpios estão de
tal modo sob a mão e a autoridade de Deus, que este lhes dirige a
malignidade a qualquer fim que lhe apraz e faz uso de seus atos
abomináveis para executar seus juízos. E talvez fosse justificável a
sobriedade destes a quem alarma a aparência de absurdo, não fora
que, sob o patrocínio de uma inverdade, de toda nota sinistra tentam
erroneamente defender a justiça de Deus.
Parece-lhes
absurdo que, pela vontade e determinação de Deus, seja feito cego um
homem que, a seguir, haverá de sofrer as penas de sua cegueira. Dessa
forma evadem-se tergiversando que isso se dá apenas pela permissão de
Deus, entretanto não por sua vontade. Mas é Deus mesmo que, ao declarar
abertamente que ele é quem o faz, repele e condena tal subterfúgio.
Que
os homens não fazem coisa alguma sem que tacitamente Deus lhes dê
per-missão, e que nada podem deliberar senão o que ele de antemão
determinou em si mesmo, e o que ordenou em seu conselho secreto, se
prova à luz de testemunhos inumeráveis e claros. O que do Salmo [115.3]
citamos anteriormente – “Deus faz tudo quanto lhe apraz” –, é certo que
se aplica a todas as ações dos homens. Se, como aqui se diz, Deus é o
árbitro real das guerras e da paz, e isto sem qualquer exceção, quem
ousará dizer que, desconhecendo-o ele ou mantendo-se passivo, são os
homens a elas arrojados, ao acaso, como por um cego impulso?
Mas,
mais luz haverá em exemplos especiais. Do primeiro capítulo de Jó
sabemos que Satanás, não menos que os anjos que obedecem de bom grado,
se apresenta diante de Deus para receber ordens. Certamente que isso ele
o faz de maneira e com propósito diferentes, todavia de modo que não
possa encetar algo, a não ser que Deus o queira. E visto que,
entretanto, em seguida parece explicitar-se permissão absoluta para que
aflija ao santo varão, daí ser verdadeira esta afirmação: “O Senhor o
deu, o Senhor o tirou; como aprouve a Deus, assim se fez” [Jó 1.21],
desta provação concluímos que Satanás e os salteadores perversos foram
os ministros; Deus foi o autor. Satanás se esforça por incitar o santo a
voltar-se contra Deus movido pelo desespero; os sabeus ímpia e
cruelmente lançam mão dos bens alheios, roubando-os. Jó reconhece que da
parte de Deus fora despojado de todos os seus haveres e em pobre transformado, pois assim aprouvera a Deus.
Portanto,
seja o que for que os homens maquinem, ou o próprio Satanás,
entre-tanto Deus retém o timão, de sorte que lhes dirija os propósitos
no sentido de executarem seus juízos. Deus quer que o pérfido rei Acabe
seja enganado; para esse fim oferece seus préstimos ao Diabo. Por isso é
enviado com um mandado definido: que seja um espírito mentiroso na boca
de todos os profetas [1Rs 22.20-23]. Se a obcecação e insânia de Acabe é
o juízo de Deus, desvanece-se o constructo imaginário da permissão
absoluta, pois seria ridículo que o Juiz apenas permitisse o que
queria que fosse feito, contudo não o decretasse e não determinasse a
execução aos serventuários.
Propõem-se
os judeus eliminar a Cristo; Pilatos e seus soldados condescendem a seu
perverso anseio. Entretanto, os discípulos confessam em solene oração
que todos esses ímpios nada fizeram senão o que a mão e o plano de Deus
haviam decretado [At 2.28]. Como já antes Pedro pregara que “Cristo fora
entregue pelo determinado desígnio e presciência de Deus”, para que
fosse morto [At 2.23], como se dissesse que Deus, a quem desde o começo
nada foi oculto, cônscia e deliberadamente determinara o que os judeus
vieram a executar, como, aliás, o reafirma em outra passagem [At 3.18]:
“Deus, que predisse através de todos os seus profetas que Cristo haveria
de sofrer, assim o cumpriu.”
Absalão,
poluindo o leito do pai mediante união incestuosa, perpetra abominá-vel
iniqüidade [2Sm 16.22]; no entanto, Deus declara ser isso obra sua,
pois estes são os termos: “Tu o fizeste em oculto; eu, porém, farei isto
às claras, e diante do sol” [2Sm 12.12].
Jeremias declara ser
obra de Deus tudo quanto de crueldade os caldeus pratica-ram na Judéia,
por cuja razão Nabucodonosor é chamado “servo de Deus” [Jr 25.9; 27.6].
Reiteradamente, apregoa Deus que por seu assobio [Is 5.26; 7.18], pelo
clangor de sua trombeta [Os 8.1], por seu império e mandado, os ímpios
são incitados à guerra; ao assírio chama “vara de meu furor e machado
que aciona em minha mão” [Is 5.26; 10.5]; a destruição da cidade santa e
a ruína do templo denomina obra sua; Davi, não murmurando contra Deus,
ao contrário, reconhecendo-o como justo Juiz, confessa também que de seu
mandado provinham as maldições de Simei [2Sm 16.1]: “O Senhor”, diz
ele, “o mandou amaldiçoar.” Mais vezes, ainda, ocorre na
história sagrada que tudo quanto acontece procede do Senhor, como o
cisma das dez tribos [1Rs 11.31]; a morte dos filhos de Eli [1Sm 2.34]; e
muitíssimos outros fatos da mesma natureza. Aqueles que são ao menos
medianamente versados nas Escrituras vêem que, para alcançar a
brevidade, menciono apenas uns poucos exemplos dentre muitos, dos quais,
no entanto, se faz mais do que evidente que dizem coisas sem nexo e
pronunciam absurdos esses que no lugar da providência de Deus colocam
a permissão absoluta, como se, assentado em uma guarita, aguardasse ele
eventos fortuitos, e assim do arbítrio dos homens dependessem seus
juízos [Institutas, V. I, pg 229-231, tradução de dr. Waldyr Carvalho Luz, Cultura Cristã] .
Notas: [1] Abordo a questão, nos seguintes textos, entre outros:
- Mistério, Paradoxo e Contradições Aparentes - Parte 1: Quando se perde até o que não se tem
- Mistério, Paradoxo e Contradições Aparentes - Parte 2: O não-dogmatismo dogmático
Notas: [1] Abordo a questão, nos seguintes textos, entre outros:
- Mistério, Paradoxo e Contradições Aparentes - Parte 1: Quando se perde até o que não se tem
- Mistério, Paradoxo e Contradições Aparentes - Parte 2: O não-dogmatismo dogmático
Fonte: Kálamos
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