quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Lei e Graça: revelação divina


Por Jorge Fernandes Isah

Qual o objetivo da Lei? [1]Salvar? Condenar?

Há uma terrível confusão entre os cristãos. Muitos acham que a Lei teve, em algum momento da história, o caráter de salvar. Fica a pergunta: quem foi salvo? Houve um homem, apenas um, que fosse salvo por ela? Nenhum. Então, por que veio a Lei? “Foi ordenada por causa das transgressões”, disse Paulo [Gl 3.19], “porque onde não há lei também não há transgressão” [Rm 4.15]. Parece que é mais ou menos isso que não somente os ímpios querem, mas muitos cristãos também. Talvez numa forma inconsciente de antinomia; talvez por desejarem pecar livremente; talvez por descuido ou ignorância; talvez porque o laicismo grite mais alto do que a lei de Deus no coração. Ou seria, meramente, outra forma de soberba dos tempos modernos? Um intelectualismo estereotipado com o intuito de se apresentar como alguém civilizado, progressista e não-retrógrado? O certo é que a lei tem o caráter de revelar o pecado, mas não somente isso, de também puni-lo. Contudo, esse preâmbulo será alvo de outra postagem, o que me interessa agora é responder à pergunta: a Lei pode salvar? Ou Deus deu-lhe vida para que todos fossem julgados e condenados por ela?

Primeiro, como é de praxe, vamos às definições dos termos:

1) Lei – A palavra lei foi usada para traduzir o termo hebraico “tora”, que significa instrução ou doutrina, e a palavra grega “nomos”, que significa hábito estabelecido. Em ambos os casos indicam alguma regra ou regulamento imposto sobre o homem ou a natureza por um poder superior. Ao legislador reserva-se o direito de punir toda infração e desobediência.

2) Lei Natural – É a Lei de Deus gravada nos corações humanos “testificando juntamente a sua consciência, e os seus pensamentos, quer acusando-os, quer defendendo-os” [Rm 2.15]; ao ponto em que até mesmo os gentios que não têm a lei, ao fazerem naturalmente as coisas que são da lei, para si mesmos são lei [v.14].

3) Lei Mosaica – Ela se divide em:
a) Lei Moral – resumida nos Dez Mandamentos, ou Dez Palavras, que regula a relação do homem com Deus e o próximo.
b) Lei Civil – são aplicações ou amplificações da Lei Moral a casos específicos, detalhando os Dez Mandamentos.
c) Lei Cerimonial – regulava os ritos relativos ao sacerdócio e aos sacrifícios, o ministério no santuário do Tabernáculo e depois no Templo.

A lei natural escrita nos corações do homem, quando da Criação, não foi suficiente para que ele não pecasse; de tal maneira que, pela corrupção do homem, foi necessário escrevê-la, literalmente, para lembrar-nos da obrigação que temos diante de Deus.

Analisemos o caso de Adão: Se não houvesse a lei, a ordem expressa de Deus para não pecar/desobedecer, comendo do fruto da árvore do bem e do mal, ele estaria tranquilamente até hoje no Éden, pois não precisaria da lei para se salvar, já que estava “salvo”. Porém, quando Deus lhe deu o mandamento, ele teve o nítido caráter de revelar o pecado “latente” em Adão; mostrando a sua imperfeição do ponto de vista não da Criação, como algo bom, mas em relação a Deus. Os privilégios dos quais desfrutava, a partir da lei e do pecado [que invariavelmente aconteceria e não havia como não acontecer], perderam-se, e o homem passou a viver como uma miserável criatura. Com ele, o qual era o cabeça da humanidade, toda a Criação caiu, não do seu caráter perfeito, mas da ordem natural, tornando-se em caos [Gn 3.16-19]. O natural se tornou antinatural, e foi preciso que o próprio Deus, na pessoa de Cristo, encarnasse e viesse ao mundo para restabelecer a ordem perdida, primeiro, nos eleitos e, quando da sua segunda vinda, em todo o Cosmos.

Pausa.

Apenas para evitar confusão, o meu entendimento é de que a ordem lógica das coisas não foi essa, mas antes se deu pelo amor de Deus para com os eleitos e, assim, veio a Criação, a Queda, a Redenção e a Santificação. Deus determinou todas as coisas por causa dos eleitos e, por eles, fez ver ao mundo o seu amor, graça, justiça e glória, ainda que o mundo não possa ver nem entender, mas os que foram chamados exclusivamente por ele a Cristo, o verão como é.

Voltando da pausa.

Portanto, qualquer um que disser que a lei poderia levar à salvação, em alguma hipótese, estará a cometer um grave erro. Ela vem para condenar, revelando o pecado e decretando a punição do infrator, e do ponto de vista pedagógico, levar os eleitos a Cristo, do qual somos completamente dependentes para sermos restaurados. Com isso não estou a dizer que voltaremos à condição de Adão, no Éden, antes da Queda; que para muitos era perfeita, mas perfeita em quê? Ou em relação a quê? Se na primeira oportunidade Adão não exitou em pecar?

Para a maioria dos cristãos, e mesmo a maioria calvinista, regindo-se pelo pensamento de Agostinho [2], o primeiro homem podia escolher entre pecar e não pecar. Contudo, fica a pergunta: diante da lei, o que se evidenciou na natureza de Adão e em nós? O pecado. Não a possibilidade de rejeitá-lo, nem de se manter puro, incontaminado, mas uma disposição natural para a depravação, para a rebeldia. É o que Paulo parece dizer: “Ora, nós sabemos que tudo o que a lei diz, aos que estão debaixo da lei o diz, para que toda a boca esteja fechada e todo o mundo seja condenável diante de Deus” [Rm 3.19]. Pensem comigo: se Adão não tivesse pecado, a lei o salvaria, mas o salvaria de quê? Qual justiça Adão buscaria na lei? Ela não lhe traria benefício algum, nenhum “extra” se a cumprisse, mas o de manter-se no estado em que se encontrava. “De toda a árvore do jardim comeras livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás” [Gn 2.16-17]. A lei veio portanto para salvá-lo? Ou para condená-lo? Qual é o seu papel? Em que Adão foi favorecido? Em nada, porque a Queda era inevitável. A lei veio revelar que Adão [e nós, os quais pecamos juntamente com ele], não podia não pecar, mas certamente pecaria, como pecou. Porque Deus encerrou tudo debaixo do pecado; e guardou-nos debaixo da lei, desde Adão; e encerrou-nos para a fé que havia de se manifestar em Jesus Cristo, para que fôssemos justificados [Gl 3.21-24].

Assim, Cristo não veio restaurar a perfeição do homem, a qual não havia, mas fazer-lhe perfeito. Primeiro, por imputação, o seu sacrifício já nos fez e tornou-nos perfeitos nele; e segundo, de fato, quando na eternidade, ao contrário do Éden, será impossível ao homem pecar. Cristo veio restaurar a condição inicial do homem antes da lei, quando não havia a possibilidade de pecado, visto não haver o “aio” que estabeleceria e normatizaria uma conduta e prática pecaminosa. Antes da lei, era impossível para Adão pecar. Antes da lei, Adão não teria como cair. Sem a lei, Adão permaneceria em seu estado de pureza “irresponsável”. Sem a lei e seus preceitos, ele era “livre” e não poderia ser acusado de nenhuma transgressão, pois não havia o que transgredir. Mas quando Deus lhe deu uma ordem, e mostrou-lhe o castigo caso desobedecesse a ordem, Adão não pode resistir. Em sua natureza, o pecado ainda não se manifestara, mas estava pronto a se revelar, a se desenvolver, bastando para isso as condições necessárias, o momento propício para tornar público o que estava oculto. A lei, em sua condição explicitamente condenatória, trouxe o pecado à tona, e fez com que todos se tornassem injustificáveis em si mesmos; que a possibilidade de falar por meio das obras fosse silenciada definitivamente; “porque pela lei vem o conhecimento do pecado” [Rm 3.20]. E, por ela, somos feitos pecadores, e indesculpáveis diante de Deus.

A lei não traz vida para a salvação, mas a morte [Rm 7.9-11]. A lei não justifica, mas acusa. Jamais liberta, mas escraviza [Gl 4.21-31]. A lei poderia absolver alguém, hipoteticamente falando, se todos não fossemos pecadores. A lei poderia declarar um homem justo, se todos não fossem injustos. A lei promete uma vida impossível, e uma morte evidente. A lei reclama que se olhe a realidade do pecado, e é inadmissível não vê-lo. E por isso é maravilhosa, santa, perfeita, pois sem ela, jamais seria revelado aos eleitos o amor de Deus. Jamais haveria Cristo, homem, e a certeza de um dia sermos como ele. Jamais seríamos perfeitos, mas num estado de falsa perfeição. A lei não nos exalta, mas humilha. Traz sobre todos os ímpios a ira de Deus [Ef 2.3]. Nos coloca em nossos devidos lugares, como carentes, desesperadamente sujeitos à misericórdia, autoridade, graça e poder de Deus. A lei nos põe debaixo da maldição, para sermos resgatados por Cristo, o qual se fez maldição por nós [Gl 3.13].

Em todos os aspectos da lei, ela não tem como nos salvar, nem alguém pode ser salvo por ela. Se a lei pudesse trazer vida, a justiça teria sido por ela; mas aprouve a Deus nos chamar à vida por seu Filho Amado Jesus Cristo. Por ele, somos feitos santos, e nos fará de fato santos, não porque escolhemos ser santos, mas porque ele nos escolheu santificar; e, uma vez com ele, com ele estaremos para sempre em perfeição e santidade.

Concluindo, a lei foi criada por Deus para estabelecer e determinar o caráter pecaminoso de nossa alma, do contrário não haveria pecado, pois não haveria transgressão, nem inobservância da lei. O que exclui qualquer possibilidade de justiça e justificação, de tal forma que estaria o homem livre para agir segundo o seu coração, sem impedimento, como um homem sem lei [Rm 7.9].

Não há nenhuma oferta de “boas novas” na lei, hipotética ou real, que propõe a salvação estando à disposição de todos que aceitassem a tarefa de obedecê-la até à perfeição; especialmente porque, além de Cristo, ninguém mais foi capaz de cumpri-la, logo, não há base para qualquer suposição teológica que corrobore a justificação legal.

A lei trouxe a justiça ao nos tornar injustos, revelando a justiça de Deus e a necessidade de sermos justificados por ele. Em outras palavras, o que ela revela é o completo desperdício e inutilidade do homem buscar a justiça de Deus na lei, sendo ela mesma a revelar-nos a sua ineficiência para a salvação. Foi o que Paulo disse: “Porque eu, pela lei, estou morto para a lei, para viver para Deus” [Gl 2.19].

Adão, ainda que não houvesse lei teria de ser regenerado em sua natureza; o que a lei fez foi revelar-lhe, e a todos nós, que os seus caminhos eram maus, e de que carecia de Deus para ser resgatado, transformado, e colocado na trilha dos seus perfeitos e santos caminhos.

Ficam as perguntas: a lei foi abolida pela graça? Ou ela se revelou na graça?
Tentarei responder mais à frente. Se Deus quiser.

Notas: [1] Este texto foi escrito previamente há mais de dois meses. Pretendia publicá-lo em seguida à minha exposição da graça, tema dos dois últimos textos, mas optei por antecipá-lo agora.
[2] Agostinho defendia o que, séculos depois, ficou conhecido como esquema infralapsariano.

Fonte: KÁLAMOS

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