domingo, 19 de dezembro de 2010

A Gênese de um Enigma


Por Alister McGrath

Sugerir que Calvino representa algo como um enigma histórico pode, à primeira vista, parecer absurdo. Não sabemos mais a seu respeito do que sobre várias outras figuras do século 16? Antes de iniciar a análise histórica e a reconstituição da incrível carreira de Calvino, porém, é relevante atentar­mos para o fato de que sabemos muito menos sobre ele, particularmente sobre seu período inicial, do que gostaríamos de saber. Seu maior legado para a civilização ocidental foram suas idéias e as formas literárias com que elas foram expostas. Na verdade, mais de um historiador sugeriu a existência de paralelos entre Calvino e Lênin, alegando que os dois possuíam um grau extraordinário de visão teórica e aptidão organizacional. Ambos fornece­ram fundamentos teóricos para movimentos revolucionários, os quais depen­deram justamente de tais fundamentos para sua organização, direção e pos­terior sucesso. O próprio Calvino, porém, como figura humana, de carne e osso, por detrás dessas idéias, permanece vago. As razões para isso não são difíceis de se entender, sendo, talvez, melhor compreendidas pela compara­ção de Calvino com o grande Reformador saxão, Martinho Lutero.

Em primeiro lugar, possuímos um material abundante, proveniente da pena generosa de Lutero, datado do período anterior ao seu surgimento como importante Reformador. Sua carreira como Reformador tem por marcos iniciais as suas Noventa e Cinco Teses, referentes às indulgências (3 í de outu­bro de 1517), o debate de Leipzig de junho-julho de 1519 e os três tratados reformistas de 1520. Por volta de 1520, Lutero era tido como um Reformador carismático e popular. Essa vocação, entretanto, fundamentava-se em um conjunto de idéias religiosas que se desenvolveram anteriormente a seu engajamento público. De 1513 a 1517, Lutero tinha-se engajado no ensino teológico, na Universidade de Wittenberg, período em ele refletiu sobre as idéias que exerceram tão grande influência sobre os acontecimentos que se seguiram. Possuímos a maioria de seus escritos, em uma ou outra forma, daqueles primeiros anos, o que nos habilita a traçar a evolução destes con­ceitos religiosos básicos.

No caso de Calvino, contudo, somos confrontados com uma ausência quase que absoluta de material de sua autoria, relacionado a seu período de formação. As origens de sua carreira como Reformador podem ser fixadas a partir de algum ponto entre o final de 1533 ou o início de 1534, mas não se sabe, precisamente, quando. Seu comentário sobre a obra De clementia, de Sêneca, que surgiu em abril de 1532, pouco revela em relação a seu autor, exceto quanto a sua erudição e as prováveis ambições juvenis de um estudi­oso humanista. A razão para essa escassez de material não é difícil de enten­der. As relações entre a coroa francesa e os ativistas evangélicos vinham se deteriorando, continuamente, durante o início da década de 1530. No início da manhã de domingo, do dia 18 de outubro de 1534, a nuvem negra, que já vinha se formando há algum tempo, finalmente se rompeu com o "Incidente dos Panfletos". Ocorreu que, naquele dia, panfletos que atacavam violentamente práticas religiosas católicas, escritos pelo panfletista Antoine Marcourt, foram afixados em importantes locais, por todo o reino da França, inclusive na antecâmara do quarto do rei, em Amboise.

Enfurecido por esses acontecimentos, Francisco I foi levado a deflagrar uma série intimidante de medidas repressivas contra os evangélicos, na Fran­ça,32 tornando desaconselhável, àqueles que tivessem uma visão reformista, chamar atenção para este fato. João Calvino já havia chegado a essa conclusão, em novembro de 1533, quando deixou Paris pela segurança relativa de Angoulême, um dia após Nicolas Cop - o recém empossado reitor - ter feito um discurso inflamado pelo Dia de Todos os Santos, na Universidade de Paris. Devemos ressaltar que o discurso de Cop, que parecia promover con­vicções evangélicas, provocou considerável oposição por parte dos mais conservadores. Calvino, provável suspeito de haver escrito o discurso, achou aconselhável deixar Paris o mais rápido possível, atitude totalmente justificá­vel em face dos acontecimentos posteriores. Como ressaltam seus biógrafos, ele escapou por pouco: dentro de algumas horas, a polícia havia revistado suas salas e confiscado seus trabalhos. Esses trabalhos que, sem dúvida, possuíam um valor inestimável para o esclarecimento da evolução do pensa­mento de Calvino durante esta fase tão importante Jamais foram encontra­dos. Assim, somos obrigados a considerar esse período de formação como um enigma. No entanto, relutando em se deixarem conter por essa falta de evidências, alguns relatos destes primeiros anos parecem ter cedido à tenta­ção de apresentar suposições históricas como fatos históricos. Até mesmo Doumergue, que corretamente afirma que se deve reconhecer ao menos par- te da carreira de Calvino como "une enigme chronologique", tende a acei­tar essas suposições históricas de seus estudiosos, em vez de se empenhar na suareconstituição crítica.

Em segundo lugar, Lutero é excepcionalmente generoso com relação a re­ferências autobiográficas, as quais encontram-se espalhadas por todas as suas obras. Talvez a referência mais famosa seja o "fragmento autobiográfico", de 1545, escrito no ano anterior à sua morte. Esse segmento funciona como uma introdução à primeira edição da coletânea de suas obras escritas em latim, na qual ele se apresenta a seus leitores. Ao longo desse prefácio, ele descreve com detalhes sua experiência pessoal, a evolução de suas idéias religiosas e o modo como se desenrolou a crise que levou à origem da Reforma Luterana. Embora reminiscências pessoais de homens idosos não sejam, em regra, muito confiáveis, as memórias de Lutero parecem acuradas, até onde podem ser comprovadas. O modo como ele sugere que se desenvolveram suas idéias religiosas (sobre as quais sua proposta de reforma se fundamentaria) também pode ser comprovado pela comparação com suas obras relativas ao período inicial de sua carreira.35 Calvino, contudo, parece ter sido reticente quanto a inserir qualquer referência pessoal em suas obras. É provável que uma passa­gem da obra Réplica a Sadoleto (1539), na qual um representante evangélico descreve seu rompimento com a Igreja medieval, possa ser autobiográfica; entretanto, Calvino não faz qualquer afirmação neste sentido. Aparte explicita­mente autobiográfica do prefácio de seu Comentário sobre os Salmos?1 de 1557, é, porém, de uma brevidade intrigante e, em certos pontos, de difícil interpretação. Em seus sermões Calvino usa, freqüentemente, a primeira pes­soa - mas não se pode, necessariamente, concluir que revele muito sobre si mesmo ao fazê-lo.38 Sua modéstia o impediu de revelar as reflexões e reminis­cências, das quais tanto depende a reconstituição histórica.

A reconstituição histórica da complexa personalidade de Calvino tem sido bastante obstruída pela subsistência de uma imagem profundamente hostil do Reformador, traçada por Jerônimo Bolsec, com quem Calvino se desentendera em 1551. Ressentido com o episódio, em junho de 1577, Bolsec publicou um livro, Vie de Calvin, em Lyon. Calvino, de acordo com Bolsec, era irremediavelmente aborrecido, malicioso, violento e frustrado. Ele considerava suas próprias palavras como se fossem a palavra de Deus e se permitia ser adorado como Deus. Além de, freqüentemente, ser vítima de suas tendências homossexuais, ele tinha o hábito de flertar com qualquer mulher que se aproximasse dele. De acordo com Bolsec, Calvino abriu mão de seus benefícios, em Noyon, em razão de terem vindo a público suas atividades homossexuais. Abiografia de Bolsec é uma leitura muito mais interessante do que as de Teodoro de Beza ou de Nicolas Colladon; no entanto, sua obra se baseia, predominantemente, em relatos orais, anôni­mos e inconsistentes, provenientes de "pessoas dignas de confiança" (personnes digne de foy), que pesquisas mais recentes consideraram de valor questionável. A despeito desse fato, a reconstituição de Calvino, traçada por Bolsec, tem influenciado muitas outras descrições, bastante desfavorá­veis, a respeito da vida e das ações do Reformador, que apresentam uma linha divisória, cada vez mais nebulosa, entre fatos e ficção. O mito de Bolsec, como tantos outros mitos que se referem a Calvino, sobrevive como uma tradição sagrada, por meio de uma repetição leviana,39 apesar de sua evi­dente ausência de fundamentação histórica.

No entanto, é bastante justo sugerirmos que Calvino não era propriamente uma pessoa agradável, faltando-lhe a perspicácia, o humor e a cordialidade que faziam de Lutero uma pessoa tão divertida nas rodas que freqüentava. A personalidade de Calvino, como se pode inferir a partir de suas obras, é a de um indivíduo um tanto quanto frio e reservado, cada vez mais predisposto ao mau humor e à irritabilidade, à medida que sua saúde se deteriorava, e dado a se engajar em brutais ataques pessoais contra aqueles com quem se desenten­dia, em vez de combatê-los apenas ao nível de suas idéias. No ano de sua morte ele escreveu aos médicos emMontpellier, descrevendo os sintomas das doenças que deterioravam sua saúde. De modo significativo, alguns dos sinto­mas eram compatíveis com enxaquecas e perturbação intestinal - ambos sinto­mas incontestáveis de stress. E impossível determinar se as situações excepci­onalmente estressantes, as quais Calvino teve que enfrentar, especialmente du­rante o começo da década de 1520, contribuíram para essa enfermidade ou se ele era naturalmente propenso ao stress em função de alguma característica de sua personalidade. No entanto, a despeito de sua relutância em falar de si mesmo, é óbvio que ele era um homem infeliz, motivo pelo qual é bastante difícil que o leitor atual sinta algum traço de simpatia. Portanto, é muito fácil se predispor a ter uma atitude antagônica em relação a Calvino.

Porque Calvino deveria ser tão relutante em se revelar? A explicação para sua personalidade complexa encontra-se na forma pela qual ele entendia seu chamado. Em um raro momento de revelação pessoal, ele deixou clara sua crença veemente de que teria sido separado por Deus para um propósito específico. Ao meditar sobre sua carreira, ele pôde perceber a mão oculta de Deus dirigindo sua vida nos momentos cruciais. Ele acreditava que, apesar de não possuir qualquer mérito pessoal, Deus o chamou, mudou o curso de suá vida, conduziu-o a Genebra e o investiu na função de pastor e pregador do Evangelho.40 Qualquer que fosse a autoridade que Calvino possuísse, ele a entendia como sendo derivada de Deus, e não de seus talentos e habilida­des inatos. Ele não era nada mais do que um instrumento nas mãos de Deus. Deve-se ressaltar que Calvino compartilhava da ênfase comum à Reforma, expressa na doutrina da justificação pela fé de Lutero e na doutrina reforma­da da eleição imerecida {ante praevisa mérito), na pecaminosidade e na insignificância da humanidade caída. O fato de que Deus o tivesse escolhido era uma expressão da compaixão e generosidade divinas, e não de qualquer mérito ou qualidade pessoal que Calvino pudesse possuir. Sugerir que seu senso de chamado divino reflete sua arrogância revela uma peculiar falta de conhecimento a respeito da espiritualidade da Reforma.

A compreensão a respeito de seu chamado é o que contém as aparentes tensões em nosso conhecimento sobre a personalidade de Calvino. Tímido e reservado, ainda assim, ele era capaz de uma coragem que beirava a intransigência, recusando-se a fazer concessões quando acreditava que a vontade de Deus estava em jogo. Pronto a ser ridicularizado, se preciso (embora isto costumasse feri-lo profundamente), Calvino não estava pronto a permitir que este ridículo fosse transferido dele, como indivíduo, para a sua causa e ao Deus que ele acreditava servir. Acima de tudo, aparentava estar convencido de que era apenas um simples instrumento, através do qual Deus poderia trabalhar; um porta-voz, através do qual Deus poderia falar. Consi­derava sua personalidade como um obstáculo potencial a essas ações divi­nas e, em resposta, aparentava ter cultivado a modéstia.

Desde o início o leitor deve estar, portanto, atento às dificuldades existen­tes em torno de qualquer reconstituição histórica da carreira e da personali­dade de Calvino e também em relação à natural - e totalmente compreensí­vel - tendência a se adotar uma atitude antagônica em relação a ele. Adiante, tentaremos fazer uso dos recursos disponíveis aos historiadores, ao final da Renascença, para desenvolver, do modo mais plausível que pudermos, um quadro das forças religiosas, sociais, políticas e intelectuais que modelaram alguns dos contextos em que Calvino viveu e, posteriormente, transformou. Existem, entretanto, lacunas significativas em nosso conhecimento. Calvino era um indivíduo extraordinariamente introspectivo, que optou por reter o material histórico que teria iluminado as sombras de sua história. Assim, é inevitável que ele seja retratado como uma figura um tanto quanto pálida, sem vida, um homem cujos mais íntimos pensamentos, atitudes e ambições nos são totalmente negados. Insatisfeitos com o esboço monocromático resultante, alguns historiadores caíram na eterna tentação de expandir os limites da história. Ainda que esta atitude seja compreensível, seu perigo deve ser prontamente reconhecido: o perfil retratado pode refletir pressuposições ocul­tas, por parte de historiadores tendenciosos, cujas lentes coloridas podem até mesmo nos negar acesso ao Calvino histórico.

O lugar de Calvino na história da humanidade fundamenta-se, de forma predominante, em suas idéias. Conseqüentemente, é essencial não apenas apontar quais possam ter sido essas idéias, mas, também, permitir ao leitor o acesso às correntes intelectuais que possam ter tido alguma influência em sua formação.

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