Por Norma Braga
Há muito do velho paganismo em nós.
Mesmo o mais racionalista dos seres pode manifestar uma ponta de
irracionalismo quando, por exemplo, adia ad infinitum a visita ao
dentista esperando inconfessadamente que o problema se resolva por si.
Mas, ao contrário do racionalista que às
vezes se comporta de modo irracional, tenho uma personalidade
naturalmente inclinada para o irracionalismo. Foi o que me levou a
buscar Deus nos meios esotéricos, por exemplo, antes de me converter.
Uma das manifestações mais dolorosas dessa inclinação é a presença de
medos obscuros e inconfessáveis cuja irrealidade só é percebida com
muito custo.
Cito alguns. Um pavor antigo, desde
criança, era a possibilidade de ficar louca do nada, ou de bater a
cabeça no chão em algum acidente e perder as faculdades mentais mais
básicas. Derivava de uma pregação comum no esoterismo: a mente podia
transformar os pensamentos em realidade. Uma vez convencido disso, tente
dormir à noite enquanto seu cérebro fabrica os acontecimentos mais
indesejados de sua vida.
Boa parte disso foi debelada com o
trabalho do Espírito Santo em mim. Com poucos anos de conversão, pude
identificar de imediato um inacreditável twist argumentativo em uma irmã
que citou Jó para confirmar o ensinamento esotérico: “Aquilo que temo
me sobrevém, e o que receio me acontece” (Jó 3.25) – um desabafo
evidentemente descritivo. Se Deus não tivesse me transformado, sabe-se
lá que tipo de síntese mística eu teria feito com o cristianismo.
Deus continua debelando em mim os medos
mais tenazes. O processo de cura, como descobri, é exemplificado em
Lamentações 3: “Quero trazer à memória o que me pode dar esperança” (Lm
3.21). Assim como o versículo de Jó, essa frase tem sido retirada de seu
contexto para justificar uma esperança mundana, baseada na lembrança de
“tempos melhores”. Mas relembrar o passado feliz em um contexto
infeliz, além de nada garantir para o futuro, é uma verdadeira tortura
autoinfligida. E pior: às vezes não há o que lembrar. Uma infância
infeliz, uma cadeia de insucessos amorosos, o cotidiano de pobreza que
atravessa gerações… Nesses casos, como o versículo se aplicaria?
Percebe-se então que a ênfase do texto não pode estar nos fatos da vida.
Mas onde estará?
Vejamos. Jeremias relembra o passado,
mas um passado nada glorioso: “Eu sou o homem que viu a aflição pela
vara do furor de Deus” (Lm 3.1), resume ele seus infortúnios. Todo o
livro é uma grande lista de infortúnios, resultantes dos contínuos
pecados do povo de Israel. Até que o versículo 21 do capítulo 3 inaugura
a mudança de foco:
“Quero trazer à memória o que me pode
dar esperança. As misericórdias do Senhor são a causa de não sermos
consumidos, porque as suas misericórdias não têm fim; renovam-se a a
cada manhã. Grande é a tua fidelidade. A minha porção é o Senhor, diz a
minha alma; portanto, esperarei nele.”
Onde Jeremias foi buscar esperança?
Nenhum acontecimento pessoal é evocado, mas sim essa característica
divina: o Deus de Israel é misericordioso. Caso haja arrependimento, Sua
ira não dura para sempre. Jeremias sabia disso a partir do registro de
tudo o que havia sido feito a seu povo até então. Hoje, também sabemos
disso, primordialmente, pelo registro bíblico de tudo o que Deus fez nas
vidas de Abraão, Moisés, Josué, Isaías, Paulo e de todos aqueles que,
tendo sido alvo da grande misericórdia do Senhor, andaram com Ele. Assim
como somos “enxertados” na família da fé (Rm 11), também ocorre conosco
essa apropriação da vivência de outros: todo novo cristão, inicialmente
sem referenciais para pensar e enxergar Deus, apropria-se das
maravilhas do passado e as integra a seu horizonte. Quando não há
lembrança pessoal dos feitos de Deus, a fé inaugura o processo e a
Palavra entra como experiência adquirida.
Nova convertida, eu não tinha acesso à
experiência direta com a cura divina de meus temores. Foi trazendo à
memória o caráter de Deus, com o poder do Espírito Santo, que meu
coração foi orientado para a segurança da onipotência do Pai sempre que
pseudoverdades, tais como a do pensamento mágico e do poder da mente,
ameaçavam me submergir. Em um processo longo, que durou anos (e ainda
continua em alguma medida), grandes medos foram vencidos com a lembrança
– em meio a grande choro e oração – de que toda a realidade está nas
mãos dele. Diante de pecados recém-descobertos, é a partir da
experiência adquirida biblicamente que precisamos clamar: “Quero trazer à
memória o que me pode dar esperança.” Não algum ponto de nosso passado,
que no caso sequer existe, mas o foco no contínuo educar da mente para
pensar toda a realidade – inclusive a realidade mais apavorante dos
medos obscuros – segundo os conteúdos expressos em Sua Palavra: o que
pode – é capaz – de nos dar esperança é o maravilhoso caráter de nosso
Deus, atestado nos relatos de nossa fé e posteriormente, se o provamos
(Sl 34.8), na nossa vida.
Racionalista ou irracionalista, sejam
quais forem os males que o assediam, você deve se apropriar
conscientemente dessa Palavra que agora, por causa do nosso enxerto na
família de Deus, pertence-nos por completo, como parte da própria seiva
que nos alimenta como galhos enxertados. Se não o fizer, sua esperança
será puro saudosismo, sem apoio consistente algum.
Oro para que você faça isso, aplicando-a contra todos os seus pecados e em todas as suas aflições.
Fonte: Blog da autora Via: Púlpito Cristão
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