Por Timóteo Carriker
Fora
da igreja e entre estudiosos, para a surpresa de muitos que estão
dentro da igreja, João Calvino frequentemente é visto com bons olhos. O
gênio marxista, Leon Trotsky, que ajudou Lenin a criar a União Soviética
a partir da Revolução Russa de 1917, afirmou que Karl Marx e João
Calvino eram os dois maiores revolucionários em toda a história do
Ocidente. Mas popularmente é comum depreciar a contribuição de Calvino,
inclusive dentro da igreja, especialmente no que se trata da obra
missionária. Não é raro pensar que João Calvino e o movimento que ele
gerou não se interessaram pela obra missionária e pouco contribuiram
para a reflexão missiológica hoje.
No início do século, o
historiador da missão da igreja, o alemão Gustav Werneck, por exemplo,
afirmou: “nós perdemos com os Reformadores não apenas a ação
missionária, mas mesmo a ideia de missões… [em parte] porque
perspectivas teológicas fundamentais deles evitaram que dessem a suas
atividades, e mesmo a seus pensamentos, uma direção missionária”1.
Entretanto,
muito pelo contrário e mesmo com toda a preocupação pela reforma da
igreja na Europa, João Calvino contribuiu não só para o movimento
missionário em si como também para a reflexão missionária que nutre o
bom empenho missionário até os dias de hoje. Ele enviou centenas de
missionários por toda a Europa e até ao Brasil. Não é um exagero
atribuir-lhe o título de “pai da pensamento missionário protestante”.
Hoje
queremos considerar a contribuição de João Calvino para a teologia de
missão. No próximo artigo veremos a sua contribuição à ação missionária.
A teologia de missão
João
Calvino não escreveu nenhuma “teologia de missão” ou reflexão a
respeito da “missão” de Deus ou a “missão” da igreja. E nem podia.
Afinal de contas até o século 16, a palavra “missão” era reservada para
se referir à relação da trindade: a missão do Filho como o enviado do
Pai e a missão do Espírito Santo como o enviado do Filho e do Pai2.
Mas muito mais importante que isto, Calvino estabeleceu as bases
bíblicas e teológicas para falar do papel da igreja na transformação da
sociedade, e não apenas em termos locais, mas também em termos globais.
1. “Missio Dei et missio Christi”.
Fundamentalmente Calvino estabeleceu a base cristocêntrica e
teocêntrica da missão. E deu forte apoio à evangelização através dos
seus comentários. Calvino entendeu que, por meio de Cristo, Deus está
atualmente reinando no nosso mundo. Veja, por exemplo, alguns dos seus
comentários da Bíblia:
a) acerca de Isaías 2.4:
“a
diferença entre o Reino de Davi, que era apenas uma sombra, e este
outro Reino ... [é que] ... pela vinda de Cristo, [Deus] começou a
reinar … na pessoa de seu Filho unigênito”.
b) acerca de Isaías 12.4-5:
“Esta
exortação, pela qual os judeus testemunharam a sua gratidão, deve ser
considerada o percursor da proclamação do evangelho, que depois seguiu
na ordem certa. Como os judeus proclamaram entre os medos e os persas, e
as outras nações vizinhas, o favor que era demonstrado para eles,
assim, quando Cristo se manifestou, eles deveriam ter sido arautos para
ressoar em alta voz o nome de Deus através de cada país do mundo.
Portanto, é evidente qual seja o desejo que deve ser o tesouro de todos
os piedosos. É que a bondade de Deus seja conhecida por todo e que todos
se reunam no mesmo culto a Deus. Nós devemos ser especialmente
possuídos deste desejo, depois de sermos libertos de algum perigo
alarmante, e acima de tudo, depois de ter sido libertos da tirania do
diabo e da morte eterna”.
c) acerca do Salmo 22.8:
“esta
passagem, não tenho dúvidas, concorda com muitas outras profecias que
representam o trono de Deus erguido, no qual Cristo pode assentar-se
para comandar e governar o mundo”.
d) acerca de Miqueias 2.1-4:
“O
reino de Cristo somente se iniciou no mundo quando Deus mandou que o
evangelho fosse proclamado em todo lugar e... hoje o seu curso ainda não
se completou”.
e) acerca de Ezequiel 18.23:
“Deus
certamente nada mais deseja, para aqueles que estão perecendo e
correndo para a morte, que retornem para o caminho da segurança. Por
isso o evangelho é proclamado hoje por todo o mundo, porque Deus quis
testemunhar por todas as épocas que ele se inclina grandemente para a
misericórdia”.
f) e acerca de 1 Timóteo 2.4:
“Não
há nenhum povo e nenhuma classe no mundo que seja excluída da
salvação; porque Deus deseja que o evangelho seja proclamado para todos
sem exceção”.
O reino de Deus, por meio de Cristo, é a
base nos escritos de Calvino para a sua missiologia implícita. Acerca de
Isaías 2.2, Calvino comentou que haverá “progresso ininterrupto” na
expansão do reino de Cristo “até que Ele apareça uma segunda vez para
nossa salvação”. Uma das implicações deste reino presente é a destruição
da distinção entre judeus e gentios e a necessidade consequente da
proclamação dos Evangelhos entre todos os gentios do mundo. Isto também
decorre da sua noção de eleição. Diante do governo de Cristo sobre toda a
terra, há duas respostas: os repróbos negam o domínio de Cristo e até o
atacam e os eleitos são “trazidos para prestar uma disposta obediência a
Ele”. Nada poderá barrar o avanço do governo de Cristo. E a tarefa da
igreja é pregar a Palavra de Deus porque “não existe outra forma de
edificar a igreja de Deus senão pela luz da Palavra, em que o próprio
Deus, por sua própria voz, aponta o caminho da salvação. Até que a
verdade brilhe, os homens não podem se unir juntos, na forma de uma
verdadeira igreja”3. Deus escolheu usar as pessoas como seu
instrumento para pregar o Evangelho para todas as pessoas. O que motiva
as pessoas a pregar o Evangelho é o zelo pela glória de Deus, a
finalidade principal de toda a humanidade. Conforme Charles Chaney, “o
fato de que a glória de Deus era o motivo primordial nas primeiras
missões protestantes e isto ter se tornado, mais tarde, uma parte vital
do pensamento e atividade missionárias, pode ser traçado diretamente em
direção à teologia de Calvino”4. Assim, vemos a reflexão do Calvino que contribui significantemente para a teologia de missão hoje.
Algumas
pessoas, entretanto, objetam, alegando que a teologia de Calvino levou
obstáculos teológicos para o desenvolvimento posterior da missão da
igreja. Apontam principalmente para a sua doutrina da predestinação e um
suposto mau entendimento a respeito da Grande Comissão.
2. Predestinação.
Alega-se, por exemplo, que a doutrina calvinista da predestinação faz a
obra missionária irrelevante. Mas esta não é a lógica de Calvino que
argumentava que o principal instrumento que Deus usava para salvar as
pessoas era a pregação da Palavra de Deus:
“Embora ele
seja capaz de realizar a obra secreta de seu Santo Espírito sem qualquer
meio ou assistência, ele também ordenou a pregação externa, para ser
usada como um meio. Mas para torná-la um meio efetivo e frutífero, ele
escreve com seu próprio dedo em nossos corações aquelas palavras que ele
fala em nossos ouvidos pela boca de um ser humano”5.
“Deus não pode ser invocado por ninguém, exceto por aqueles que conheceram sua misericórdia por meio do Evangelho”6.
Porque o número dos eleitos é desconhecido, cabe à Igreja pregar o Evangelho livre e irrestritamente a todos7.
Logo a doutrina da predestinação em nada impede a tarefa missionária.
Antes, a encoraja como dever da igreja em prol dos eleitos.
3. A Grande Comissão.
É verdade que Calvino interpretou a Grande Comissão como se referindo
ao ministério apostólico do primeiro século. Mas não é verdade que
Calvino entendeu que os apóstolos completaram a tarefa para fazer
desnececessária a tarefa da evangelização contemporânea. Entendeu que os
apóstolos completaram apenas o início da tarefa e que a evangelização
do mundo continua uma tarefa para a igreja. Calvino, como os outros
reformadores, era apenas contra a doutrina católica da sucessão
apostólica e assim argumentava que o apostolado era um “munus
extraordinarium” temporário que cessou com os doze. A Grande Comissão
fazia parte deste argumento contra o catolicismo, mas não contra a
evangelização mundial em si.
4. Missão integral.
A dicotomia entre a espiritualidade e o engajamento social não é
herança de Calvino, e sim de alguns dos seus seguidores em séculos
posteriores. Para Calvino, o discípulo de Cristo deveria seguir o
evangelho no seu pensamento e por ações sociais e políticas8. Esta
integralidade de pensamento missiológica é descrita pelo bispo
anglicano, Robinson Cavalcanti, da seguinte forma:
“Do
ponto de vista reformado, ou calvinista, o homem é um ser integralmente
unificado. Deve-se evitar dicotomias. Tudo é esfera sagrada, e deve-se
aplicar a Palavra de Deus a todas as áreas da vida. Toda a criação caiu
com o pecado e está agora sob a ação redentora de Cristo, que é o Senhor
tanto da Igreja quanto da sociedade. Os cristãos devem lutar hoje para
manifestar a presença do reino de Deus, embora a sua plenitude somente
se alcançará com o retorno de Cristo. Somos salvos para servir. Os
cristãos devem se infiltrar em todas as esferas da sociedade para
chamá-la ao arrependimento e à conformação às normas do reino. A Igreja é
um centro de arregimentação e treinamento de pessoas que se reformam
para reformar”9.
Para Calvino, o evangelho
toca todas as áreas da vida humana e a igreja deve também exercer a sua
missão em prol da transformação de pessoas e das suas instituições
sociais, econômicas, políticas, etc. Justamente porque Cristo é Senhor
sobre toda a vida, a Palavra de Deus desafia toda a vida humana. Ricardo
Quadros Gouvêa afirma: “Calvino não visava em sua obra meramente uma
reforma doutrinária e uma reforma da vida da igreja, mas também a
transformação de toda cultura humana em nome de Jesus e para a glória de
Deus.10” Não nos surpreende, então, que nos seus
comentários, sermões, cartas e na sua obra-prima de teologia, “As
Institutas”, encontramos a preocupação de Calvino com uma teologia que
hoje denominaríamos de “integral”, isto é, com as implicações sociais do
Evangelho na transformação completa de pessoas e do ambiente que as
cerca11.
5. “Missão” na liturgia.
Finalmente notamos a preocupação pela evangelização mundial
repetidamente nas orações de Calvino. Segue um exemplo de uma oração
assim escrita para o uso no culto dominical:
“Finalmente,
oferecemos orações a ti, Ó Deus cheio de graça e Pai de todas as
pessoas em geral, cheio de misericórdia, enquanto se agrada em ser
reconhecido como Salvador de toda a raça humana pela redenção realizada
por Jesus Cristo, teu Filho, para que aqueles que ainda são estranhos ao
conhecimento dele, e mergulhados na escuridão, e são levados para o
cativeiro pela ignorância e erro, possam, pelo teu Espírito Santo
brilhando neles, e pelo teu evangelho ressoando nos seus ouvidos, ser
trazidos de volta para o caminho certo da salvação que consiste no
conhecimento de ti, o verdadeiro Deus e Jesus Cristo que tu enviaste12”.
Conclusão
Tudo
isto mostra o quanto Calvino se preocupava com a missão da igreja e
como ela fez parte importante da sua teologia e prática cúltica. Como
veremos no próximo artigo, Calvino também se empenhava de modo prático e
intenso na evangelização com muito êxito na Europa e dentro dos seus
limites externos e internos no Novo Mundo.
Notas:
1. History of Protestant Missions, p. 9.
2.
A terminologia de “missão” para se referir à evangelização dos povos
(no caso, não-católicos) veio a ser usada somente no século XVI pelos
jesuítas e carmelitas que começaram a enviar missionários ao Novo Mundo.
3.
Comentário sobre Miquéias 4:1-2, citado em CHANEY, Charles. “The
Missionary Dynamic in the Theology of John Calvin,” Reformed Review 17
(Mar. 1964): 28.
4. CHANEY, Charles Ibid., 36-37.
5.
CALVIN, João. The Bondage and Liberation of the Will: A Defence of the
Orthodox Doctrine of Human Choice against Pighius. Grand Rapids: Baker,
1996, 215.
6. CALVIN, João. Institutas da Religião Cristã, 3.20.12. Veja também 3:20.1; 3.20.11.
7. CALVIN, João. Institutas da Religião Cristã, 3.23.14.
8.
BARTH, K. apud BIÉLER, A. O Pensamento Econômico e Social de Calvino,.
trad. Waldyr Carvalho Luz. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1990.
p. 29.
9. CAVALCANTI, R. Cristianismo e Política: teoria bíblica e prática histórica, p. 129.
10.
GOUVÊA, R. Q. A importância de João Calvino na teologia e no pensamento
cristão. In: CALVINO, J. A Verdadeira Vida Cristã, p. 5.
11.
BIÉLER, André, op cit. SOUZA DE MATOS, Alderi, “Amando a Deus e ao
Próximo: João Calvino e o Diaconato em Genebra,” Fides Reformata 2:2
(Jul-Dez 1997), 69-88.
12. CALVINO, João. Tracts and Treatises Vol. 2: The Doctrine and Worship of the Church. Grand Rapids: Eerdmans, 1958, 102.Fonte: Ultimato
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