terça-feira, 31 de agosto de 2010

A Reforma e o Homem


Por Francis Schaeffer (1912 -1984)

Conhecemos, pois, algo deslumbrante a respeito do homem. Entre outras coisas, conhecemos a sua origem e quem ele é – criado à imagem de Deus. É o homem maravilhoso não apenas quando é “nascido de novo” como um cristão, é também maravilhoso como o fez Deus a Sua própria imagem. Tem o homem valor e dignidade em função daquilo que foi originalmente, antes da Queda.

Estava, há pouco, fazendo uma série de preleções em Santa Bárbara, quando me foi apresentado um rapaz viciado em entorpecentes. Era um jovem de semblante delicado e expressivo, cabelos longos e encaracolados, os pés calçados com sandálias, e trajava calça rancheira. Assistiu a uma das preleções e confessou: “Isto é completa novidade para mim; nunca ouvi coisa alguma igual a isto”. Voltou na tarde seguinte e eu o saudei. Olhou-me firmemente nos olhos e disse: “O senhor me cumprimentou de maneira tocante. Por que me tratou assim?” Respondi-lhe: “é porque eu sei quem você é – sem que você foi criado à imagem de Deus”. Em seguida tivemos uma demorada e notável conversa. Não podemos tratar as pessoas como seres humanos, não podemos vê-las no alto nível da verdadeira humanidade, a menos que conheçamos realmente a sua origem – quem são. Deus diz ao homem quem ele é. Deus nos declara que Ele criou o homem à própria imagem. Portanto, o ser humano é algo maravilhoso.

Deus, entretanto, nos diz algo mais a respeito do homem – fala-nos acerca da Queda. Isto introduz o outro elemento que precisamos conhecer a fim de entendermos o ser humano. Por que é, a um tempo, criatura tão maravilhosa e tão degradada? Quem é o homem? Quem sou eu? Por que pode o homem realizar estas coisas que o fazem único, no entanto, porque é ele tão horrível? Por que?

Diz a Bíblia que você é maravilhoso porque é feito à imagem de Deus e degradado porque, em determinado ponto espaço-temporal na história, o ser humano caiu. O homem da Reforma sabia que a criatura marcha rumo ao Inferno em razão da revolta contra Deus. Todavia o homem da Reforma e aqueles que após a Reforma forjaram a cultura do Norte Europeu sabiam que, enquanto o homem é moralmente culpado diante do Deus que existe, ele não é o nada. O homem moderno tende a julgar-se ser nada. Aqueles, entretanto, sabiam que eram exatamente o oposto do nada porque conheciam o sentido de serem feitos à imagem de Deus. Embora decaídos e, a parte da solução não-humanista de Cristo e Sua morte substicionária, iriam para o Inferno, isto não significava, contudo que eram nada. Quando a Palavra de Deus,a Bíblia veio a ser ouvida, a Reforma teve resultados tremendos, tanto nas pessoas individualmente, que se tornavam genuínos cristãos, como na cultura em geral.

O que a Reforma nos diz, pois, é que Deus falou nas Escrituras tanto acerca do “andar de cima” como do “andar de baixo”. Falou em verdadeira revelação acerca de Si mesmo – as coisas celestiais – e falou em verdadeira revelação a respeito da própria natureza – o cosmos e o homem. Portanto, tinham os Reformadores uma real unidade de conhecimento. Eles simplesmente não tinham o problema renascentista de graça e natureza! Obtinham real unidade, não que fossem mais sagazes, mas porque alcançavam uma unidade cuja base se achava no que Deus revelara em ambas as áreas. Em contraste com o Humanismo de Tomás de Aquino liberara e o Humanismo que o Catolicismo Romano fomentara, não reconhecia a Reforma qualquer porção autônoma.

Não queria isto dizer que não restava liberdade para a arte ou a ciência. O oposto é que era verdade; havia agora a possibilidade da verdadeira liberdade dentro da forma revelada. Contudo, ainda que haja liberdade para a arte e a ciência, não são elas autônomas – o artista e o cientista também se acham debaixo da revelação das Escrituras. Como se verá, sempre que a arte ou a ciência procuraram fazer-se autônomas, certo princípio sempre se manifestou – a natureza “devora” a graça e, consequentemente, a arte e a ciência bem logo começaram a parecer destituídas de significação.

A Reforma teve não poucos resultados de tremendo alcance e tornou possível a cultura que tantos dentre nós admiramos afetuosamente – ainda que a nossa geração a esteja agora lançando fora. Confronta-nos a Reforma um Adão que era, usando a terminologia característica da forma de pensamento do século vinte, um homem não-programado – não arranjado como um cartão perfurado de um sistema de computação. Uma característica que marca o homem do século vinte é que ele não pode visualizar isto, uma vez que é de todo infiltrado por um conceito de determinismo. A perspectiva bíblica, entretanto, é clara – homem não pode ser explicado como totalmente determinado e condicionado – posição que forjou o conceito da dignidade do homem. Há pessoas que buscam hoje apegar-se à dignidade do homem, entretanto não têm base conveniente em que se fundamentar pois que perderam a verdade de que o homem foi feito à imagem de Deus. Ele era um homem não programado, um homem revestido de significado numa história de alto sentido, capaz de alterar a história.

Temos, pois, no pensamento da Reforma um homem que é alguém. Vemo-lo, porém, envolvido numa condição de revolta e a rebeldia é real – jamais uma “peça de teatro”. Uma vez que é um ser não programado e de fato se revolta, ele incide em genuína culpabilidade moral. À vista disto, os Reformadores compreenderam algo mais. Tiveram uma compreensão bíblica da obra de Cristo. Compreenderam que Jesus morreu na cruz em função substitutiva e em ação propiciatória a fim de salvar o homem da verdadeira culpa que sobre ele pesa. Necessitamos reconhecer que, no instante em que nos pomos a alterar a noção bíblica da verdadeira culpa moral, seja falsificação psicológica, seja a falsificação teológica ou seja de qualquer outra forma, nosso conceito da obra de Jesus não mais será bíblico. Cristo morreu pelo homem que tinha uma culpa moral verdadeira por ele próprio ter feito essa real e verdadeira escolha.

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