Alguns anos atrás, editei um volume de ensaios sobre Bibliologia, com Paul Helm. Pouco antes da data limite de entrega dos trabalhos para apreciação, o projeto foi "citado e ridicularizado" por um pregador de uma conferência teológica de grande influência, como sendo uma tentativa moderna de reafirmar a Bibliologia de B. B. Warfield. Passados alguns dias, um dos colaboradores me mandou um e-mail, dizendo que estava preocupado porque seu nome estava sendo associado a tal projeto. Pude assegurar-lhe que o projeto não tinha a intenção de defender a posição de Warfield, mas que era uma exploração do conceito de inerrância, visto que esse conceito se relaciona tanto com Deus, quanto com sua Palavra. O cavalheiro teve sua confiança restaurada e permaneceu no quadro de colaboradores, mas o incidente serviu simplesmente para confirmar em minha mente algo que suspeitava havia muito tempo: muitos acadêmicos evangélicos querem unir o útil ao agradável. Eles querem a piedade e, talvez, o palco que o evangelicalismo lhes oferece; mas também desejam ser aceitos por aqueles que figuram nos círculos de doutores das universidades.
É lógico que o problema está no fato de que não se pode servir a dois senhores. Como o Senhor já disse: "ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de aborrecer-se de um e amar ao outro, ou se devotará a um e desprezará ao outro".
Vivemos em tempos estranhos. Raramente um ano se passa sem haja alguma conferência, em algum lugar, sobre o futuro da igreja; com pelo menos um pregador ou, às vezes, até mesmo uma lista de pregadores que, de modo controverso, representam exatamente o tipo de teologia que tem esvaziado os bancos das igrejas, eliminado a pregação e assassinado o compromisso com o evangelho.
Recentemente, vi um panfleto de uma dessas conferências, no qual havia um elogio a um grande pensador e crítico evangélico. Porém, o palestrante mais importante dessa conferência representava exatamente o tipo de teologia enganosa à qual o pensador elogiado havia devotado toda sua vida ridicularizando. Realmente, são tempos estranhos.
O que está acontecendo? Qual é o porquê dessa necessidade covardemente desprezível de receber aceitação da maior parte do mundo?
Suspeito que haja muitas razões para esse problema. Primeiro, o contexto do evangelicalismo se presta exatamente a esse tipo de confusão. De fato, o evangelicalismo não compreende o que ele próprio é. Ele é um movimento baseado na experiência (novo nascimento), nos compromissos teológicos ou em instituições para-eclesiásticas? É aí que está a dificuldade: O primeiro fator (experiência) se degenerará num mero misticismo subjetivo se não estiver associado ao segundo (compromissos teológicos). O segundo fator tem sido bem discutido entre os evangélicos, os quais nem mesmo concordam em relação à resposta à pergunta de Pilatos: "O que é a verdade"? E o terceiro (instituições para-eclesiásticas) muitas vezes faz parte do problema para definir o segundo ou, no caso específico dos Estados Unidos, passa a ser menos ministério e mais um meio para cultuar celebridades, vulnerável ao tipo de crítica feito por Erick Hoffer; que afirmou que toda grande causa começa como um movimento, torna-se um negócio e termina como uma oportunidade para extorsão. O evangelicalismo é uma bagunça lamentável; não é puro, nem simples.
Em segundo lugar, se um movimento não sabe o que ele mesmo é, então não pode fazer qualquer exigência satisfatória em relação aos que pertencem a ele e aos que não pertencem. Os limites de um movimento acabam se revelando por aquela pessoa que mais se aproxima do fato de pertencer, mas que, no entanto, não pertence ao movimento. Ário é um antigo exemplo disso na igreja. Por mais elevada e exaltada que fosse sua visão de Cristo, ele ainda era capaz considerá-lo simplesmente como uma criatura e não como completamente Deus. O limite estava traçado e Ário estava fora dele. Combine os problemas de definição da identidade evangélica com a atual inclinação cultural para não excluir quem quer que seja, e você terá uma receita entorpecedora para um desastre total. Diga coisas agradáveis sobre Jesus, tenha um sentimento cordial quando alguém acender uma vela e seja bondoso com sua avó e – e instantaneamente! – você é um membro; você pode ser um evangélico. Dessa forma, teremos aqueles que negam a substituição penal; que não têm qualquer noção significativa da autoridade bíblica, da exclusividade de Cristo na salvação, da justificação pela graça, por meio da fé e da singularidade da salvação. Não importa: apenas enfatize que Jesus era um cara legal e divertido; articule algumas frases que pareçam ortodoxas; fale com um tom apaixonado e você também poderá ter seu certificado de membrezia e fazer um discurso de apresentação. E se as conferências que mencionei acima forem um indício de como as coisas estão, é sinal que temos sido enganados por esses ardis o tempo todo.
Em terceiro, seria como se houvesse um complexo de inferioridade evangélico generalizado. Isso significa que ao mesmo tempo em que desejamos não excluir quem quer que seja, tememos ser excluídos. Naturalmente, num mundo tão mal definido, é sempre uma tentação para um acadêmico evangélico, fazer as coisas do modo mais fácil ou permanecer calado acerca de alguns compromissos doutrinários mais embaraçosos, a fim de obter um pouquinho mais de influência naquele palco um pouquinho maior, do outro lado do mundo. Essa é uma tentação específica dos eruditos e sistematistas evangélicos, cujas grandes associações são completamente antipáticas ao tipo de sobrenaturalismo e reivindicações das verdades antiquadas, sobre as quais os estatutos de suas igrejas foram amplamente constituídos. Ao fazermos isso, enganamos a nós mesmos, dizendo que, de algum modo, estamos fazendo a obra de Deus; pois se temos artigos publicados neste periódico ou por aquela editora, estamos realmente fazendo progressos na cultura incrédula das faculdades teológicas. Não que essas coisas não sejam boas e dignas – eu mesmo faço esse tipo de coisa – mas precisamos ter o cuidado para não confundir realizações acadêmicas profissionais com a edificação dos santos ou com o fato de marcarmos pontos para o reino de Deus.
Conforme James Barr destacou anos atrás, continua sendo verdade que os acadêmicos evangélicos somente são respeitados no mundo acadêmico exatamente por aqueles pontos nos quais eles são menos evangélicos. Existe uma diferença entre respeitabilidade acadêmica ou erudita e integridade intelectual. Para um cristão, esta depende da aprovação de Deus e está arraigada na fidelidade à sua Palavra revelada. Isso nem sempre significa jogar conforme as regras das associações acadêmicas.
Finalmente, pouquíssimos acadêmicos evangélicos parecem ter muita ambição. Talvez isso soe estranho: o desejo de manter o direito de posse de uma posição na universidade; de publicar com certas editoras; de palestrar em certas conferências acadêmicas; de trocar idéias com os chefões das associações – todas essas ambições parecem muito comuns; entretanto, a verdadeira ambição, a verdadeira ambição cristã, certamente se baseia na edificação da igreja e no serviço ao povo de Deus, e se direciona para isso. Mas é exatamente nesse ponto que os acadêmicos evangélicos falham de modo tão evidente. De forma geral, o impacto que os eruditos evangélicos têm obtido no mundo acadêmico tem sido irrisório e, muitas vezes (conforme mencionado) confinado àquelas áreas em que suas contribuições têm sido insignificantemente evangélicas. Se o mesmo tempo e energia fossem dedicados à edificação dos santos, imagine como a igreja poderia estar transformada.
Isso não significa dizer que não devemos permitir a erudição substancial, nem que as necessidades de um homem ou de uma mulher do banco da igreja sirvam de critério pelo qual a relevância deva ser julgada; mas é afirmar que toda a erudição teológica deve ser realizada com o alvo primordial de edificar os santos, confundir os oponentes do evangelho e encorajar os irmãos. A façanha mais elevada que um teólogo evangélico erudito pode alcançar não é ser membro de alguma associação elitista, mas sim obter o conhecimento de que ele tem trabalhado para fortalecer a igreja e expandir o reino de Deus, por meio da igreja local.
Está chegando o dia em que as elites intelectuais e culturais do evangelicalismo – instituições e indivíduos – terão de enfrentar uma árdua decisão. Vejo a crise se aproximando em duas frentes de batalha diferentes, mas intimamente ligadas. Primeira, está chegando a hora e, talvez já tenha chegado, em que crer que a Bíblia é a Palavra inspirada de Deus, imposta por Ele e totalmente verdadeira, será, na melhor das hipóteses, um suicídio intelectual e na pior delas, um sinal de doença mental. Segunda, articular qualquer forma de oposição ao homossexualismo será o mesmo que advogar em favor da supremacia da raça branca ou do abuso de crianças. Nesses tempos, a escolha será clara. Aqueles que se mantiverem nas fileiras cristãs serão óbvios, e aqueles que têm gastado suas vidas tentando servir tanto aos ortodoxos quanto aos acadêmicos descobrirão que nenhum contorcionismo intelectual poderá salvá-los. A preocupação com o fato de serem associados a B. B. Warfield será a menor delas.
Anos atrás, Mark Noll escreveu um livro, The Scandal of the Evangelical Mind ("O Escândalo da Mentalidade Evangélica"), no qual ele argumentava que o escândalo residia no fato de não haver tal mentalidade evangélica. No que diz respeito aos eruditos evangélicos e à sua erudição, eu discordo, o escândalo não está no fato de não haver uma mentalidade evangélica; mas no fato de existir, em nossos dias, um pequeno evangelho muito valioso.
Fonte: Editora Fiel
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