Cristo: o Verbo encarnado |
Por Geremias do Couto
Acompanhei nos últimos dias o debate sobre as duas naturezas de Cristo: divina e humana. Não me manifestei antes porque não faz muito tempo participei intensamente da discussão sobre a Dake e quis evitar qualquer parecença de estar aproveitando o momento para desabafos pessoais, criando assim uma zona de atrito desnecessária. Pareceu-me de bom tom evitar fazer qualquer análise que pudesse ser tomada como beligerante, mesmo que não houvesse essa intenção.
Todavia, o tema é relevante e demanda continuar sendo aprofundado, embora por quase dois séculos tenha sido um dos pontos centrais da discussão teológica, que consolidou o pensamento cristão sobre a deidade e a humanidade de Cristo. Trata-se, portanto, de sólido alicerce que nos ajuda a produzir boa literatura contemporânea para fortalecer ainda mais as nossas convicções cristãs. É com este pensamento que deixo aqui a minha contribuição.
Para situar o leitor – se é que ainda não saiba – tudo teve início com a análise trazida pelo pastor Ciro Zibordi em seu blog sobre o chavão: Jesus Cristo é 100% Deus e 100% homem. Para não cometer o erro de torcer as palavras, eis como ele se reportou ao assunto na postagem: Coisas que a Bíblia não diz (2):
Essa assertiva teológica também precisa ser vista à luz da Bíblia. Que Jesus é o Deus-Homem não se discute (1 Tm 2.5). Ele é Deus e é Homem. Entretanto, Ele é 100% divino — nunca deixou de ser Deus, ainda que tenha aberto mão, temporariamente (Jo 17.4,5; Mt 28.18), de alguns dos atributos ao se encarnar (Fp 2.6-11; Hb 1.8) —, mas não é, biblicamente, 100% humano.
Essa mesma reflexão já constava do seu livro Erros que os Pregadores Devem Evitar, lançado pela CPAD em 2005, da seguinte forma:
Há uma expressão teológica que precisa ser entendida à luz da Palavra de Deus: "Jesus Cristo é cem por cento Homem". A Bíblia Sagrada não afirma isso, mas diz que Ele se fez "...semelhante aos homens" (Fl 2.7). Ou ainda: "...convinha que, em tudo, fosse semelhante aos irmãos..." (Hb 2.17) Leia também Romanos 8.3.
Jesus não se fez igual aos homens; antes, semelhante. Ele não deixou de ser Deus, mas uniu em seu corpo as naturezas divina e humana: "...nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade" (Cl 2.9), podendo viver uma vida completamente afastada do pecado (Hb 4.15), apesar de ter sofrido e morrido como homem (Fp 2.5-8).
Em outra postagem onde analisa o que Hank Hanegraaf escreveu sobre o tema, no livro Cristianismo em Crise, também lançado pela CPAD, o pastor Ciro Zibordi flexibilizou e assentiu como admissível o uso do bordão desde que quisesse referir-se a Cristo como semelhante e não igual ao homem. Veja:
Se eu afirmar que Jesus é 100% homem no sentido de reconhecer que Ele se encarnou e viveu como um ser humano, sujeitando-se às limitações humanas, sem deixar de ser Deus — e, nesse caso, sem perder os seus atributos divinos morais, como a santidade, a verdade, a justiça, a retidão, etc. —, estarei correto à luz da Bíblia.
Como se vê, o “chavão” que antes fora definido de maneira peremptória como uma afirmação inadequada ("[Jesus]... não é, biblicamente, 100% humano") passou a ser considerado, de uma postagem para outra, como admissível, nas condições em que o pastor Ciro Zibordi situou, que, por sua vez, conflita com tudo quanto escreveu a respeito. De qualquer modo, não deixou de ser um avanço, talvez em virtude dos comentários e postagens que se seguiram em outros blogs, discordando de sua argumentação. Ainda assim a essência do seu pensamento permaneceu inalterada. O que me causou estranheza foi a maneira irônica e até debochada com que se expressou ao referir-se àqueles que não mediam pela mesma régua da sua proposição. Foi no mínimo hostil. Mas, como no episódio Dake, discordo também da tese defendida pelo pastor Ciro Zibordi.
Creio que posso começar minha argumentação, definindo o que é um chavão. Grosso modo, trata-se de uma frase repetitiva, que, embora lhe falte originalidade, a sua frequente repetição permite que se torne de conhecimento comum das pessoas. A falta de originalidade não significa que lhe falte conteúdo. Nem sempre. Quer dizer, isto sim, que quem usa o bordão não está sendo original, não criou um novo aforismo, por assim dizer, mas apenas repete o que já faz parte do senso comum.
Os chavões geralmente são usados por pura preguiça mental, quando não se quer (ou não se sabe) conceituar mais profundamente um assunto, ou para facilitar o entendimento das pessoas. Em muitos casos é mesmo abuso retórico por falta do que dizer ou uso inadequado de frases vazias de sentido, muitas vezes fora de contexto, ou que expressam meias verdades. Em virtude de alguns desses oradores impertinentes não saberem expor um pensamento lógico, apelam para o uso dos chavões como forma de engabelar a plateia, que, por sua vez, não quer dar-se ao trabalho de pensar ou, embotada pelas emoções, não atina para o significado do que foi dito.
No caso do chavão em debate – Cristo é 100% Deus e 100% homem – creio tratar-se de válida tentativa de expressar da forma mais clara possível uma verdade escriturística. Considero impróprio desqualificar o argumento como mero “exercício matemático”, como fez o pastor Ciro Zibordi. Ele foi extremamente infeliz, quando quis estereotipá-lo. Na verdade, não há quem, vez ou outra, por melhor que seja a sua capacidade de expor uma ideia, não faça uso de um ou outro “chavão”, com a finalidade de aclarar o que está sendo exposto. Assumo que eu sou um desses. Compreendo o desejo de ajudar os nossos pregadores a melhorar o seu desempenho e a fazer uso correto dos recursos de linguagem, mas esse afã levado ao extremo pode ensejar equívocos como este que estamos acompanhando.
Por exemplo, já ouvi muitas críticas à frase: "fiquem em espírito de oração" sob o argumento que oração não tem espírito. Ora, há que se entender, aqui, a palavra espirito como metáfora, ou seja, significando o estado, a condição, a forma pela qual as pessoas que participam do mesmo ato são convidadas a estar. Para trazer mais luz, cito duas outras frases com o mesmo vocábulo para mostrar que, às vezes, queremos ser exigentes em demasia. Primeira: "Você não conhece o espírito da lei?". Segunda: "Você não pegou o espírito da coisa". Alguma dúvida? Em ambos os casos, a palavra espírito aparece com a ideia de sentido, significado. Vamos com calma!
Para ser sincero, não vejo diferença alguma, do ponto de vista semântico, entre a frase em debate e duas outras geralmente usadas para tratar do mesmo tema: Cristo é verdadeiramente Deus e verdadeiramente Homem. Ou, como prefere o pastor Ciro Zibordi: Deus-Homem. Quem faz uso da primeira quer necessariamente dizer a mesma coisa que as outras duas afirmam. Elas expressam em essência o mesmo significado: a deidade de Cristo e a sua humanidade, ou seja, Cristo é 100% Deus e 100% homem. Não vejo sequer diferenças pontuais.
Volto a repetir: não se trata de malabarismo matemático, mas de força de expressão perfeitamente válida para expressar uma verdade bíblica. Insistir na hipótese contrária é tentar partir cabelo a machado, como dizia à época o diretor do IBAD, pastor João Kolenda Lemos. Se eu quisesse estabelecer algum sofisma, diria que a última frase – Deus-Homem – pode até dar brecha para algum questionamento, por sugerir, numa leitura apressada, que Deus esteja limitado pelo homem. Poderia ser tomada para significar que se trata de um Deus homem, e não divino. Todavia, no contexto das Escrituras, sequer entro no mérito, pois entendo o que ela realmente quer dizer. E não diz nada mais, nada menos do que Cristo é verdadeiramente Deus e verdadeiramente Homem, ou: Cristo é 100% Deus e 100% homem. Ir além disso é discutir filigranas que não existem.
Para não cansar o leitor, tratarei dos desdobramentos bíblicos do tema na próxima postagem, quando também pretendo expressar minha opinião sobre o concílio assembleiano proposto pelo pastor Altair Germano em seu blog.
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