sábado, 5 de setembro de 2009

Quotas, pra que te quero?


A questão da política das quotas raciais inspira debates apaixonados, geralmente na base da argumentação rasa e rasteira, em que preconceitos são expostos como verdades insofismáveis, prejudicando a análise séria e responsável dos problemas que lhe são subjacentes. Por isso, de imediato, preciso me identificar como branco e defensor da política de quotas (também conhecida como “ação afirmativa”), para que os eventuais leitores deste texto possam ter um parâmetro para começar a conversa. Entretanto, também entendo que esta política tem um caráter transitório e pode e deve ser aprimorada. O que não pode acontecer é que se negue peremptoriamente que existe desigualdade social-racial e péssima distribuição de renda no Brasil. O problema existe. Ponto. Agora, o que fazer para resolvê-lo? Alguns, como eu, entendem que a ação afirmativa é um caminho que pode ser seguido. Outros preferem deixar tudo como está.

Instigado pelo meu amigo Moisés, que postou o artigo da Veja no Forum Atos, fiquei sabendo que Demétrio Magnoli lançou um livro chamado “Uma Gota de Sangue – História do Pensamento Racial”. Será muito difícil, mas tentarei não descer ao nível do Magnoli quando ele debate, que sempre parte para a argumentação ad hominem, em que sempre diz que o seu eventual adversário só diz “bobagens”, o que já revela de antemão com que tipo de pessoa estamos lidando. Como não lerei o livro, porque já conheço a figura e sei o que vai dizer, vou me basear no artigo laudatório da Veja, que classifica a obra como um “esforço de pesquisa histórica monumental”, naquele velho esquema de “louva-aqui-louva-ali” que o neoconservadorismo brasileiro se especializou. Se já não saíram, devem estar no forno artigos baba-ovo da Folha, do Estadão, e do(a) Globo e suas filiadas, tudo no estilo “levanta a bola que eu cabeceio” que apresenta e promove as ideias de seus arautos como as coisas mais geniais que o homem foi capaz de produzir.

Reportando-me ao artigo em questão, quatro falácias saltam à vista do leitor mais atento. São quatro erros crassos na argumentação contra a política de quotas que analiso aqui e que se repetem rotineiramente no discurso de quem a combate:

1) em primeiro lugar, o título já diz tudo: “Queremos dividir o Brasil?”. Ora, o Brasil já está dividido há muito tempo, e as iniciativas atuais vão na direção de resolver este problema. Logo, Magnoli e Veja negam, de antemão, que o problema já existe e invertem o antecedente pelo consequente, ou seja, dizem que não existe problema racial no Brasil e a política de quotas é que vai promovê-la. Acabaram de criar a argumentação motoniveladora: passe por cima do problema para negar que ele existe. Segue a mesma linha de Ali Kamel, diretor de jornalismo da Globo, e responsável pelo Jornal “Somos Todos Brancos” Nacional, que teve a coragem de escrever um livro dizendo que não há racismo no Brasil. Lamentavelmente, não há posição mais racista do que negar que ele existe.

2) a argumentação de Magnoli faz de tudo para mostrar – sem dizer - que nada do que foi feito até agora pode resolver a questão racial. Tudo o que aconteceu até os anos 60, passando pela Segunda Guerra, as diferentes correntes que se formaram, pró e contra, não foram suficientes para dirimir o problema. Logo, nenhuma ação concreta pode ser tomada pelo governante do século XXI para pelo menos tentar resolvê-lo. Melhor deixar tudo como está. Nas entrelinhas, o que ele está dizendo é que o ser humano é racista por natureza, e nada pode ser feito para demovê-lo dessa triste sina. Numa paráfrase bizarra de Rousseau, seu mote é que “o homem é naturalmente racista, e a sociedade deve mantê-lo assim, mas pelo menos neguemos que o racismo existe”.

3) Veja associa políticas raciais à ideologia. Sim, claro que é ideologia, como tudo na vida, Cazuza já o dizia. Só que a ideologia dominante do neoconservadorismo diz que não deve haver ações afirmativas. Logo, para defenderem sua ideologia, impingem ideologia à iniciativa que querem derrubar. Percebeu? Não há problema algum em ser ideológico, afinal todos nós seguimos uma ideologia, independentemente de nos darmos conta disso. Afinal, os textos de Magnoli estão sempre disponíveis no site do Democratas, aquele partido bonzinho, ex-PFL, que nunca quis quotas de governo e de poder para si. É curioso que eles citem Obama como “mestiço”, o mesmo Obama que se beneficiou da ação afirmativa norte-americana e chegou à Presidência daquele país.

4) Agora, o que impressiona mesmo é que não há no texto uma só referência a John Rawls, o grande filósofo americano precursor das ações afirmativas. Faça uma pesquisa complicada no Google, com as expressões – em português - “John Rawls”, “teoria da justiça” e “ação afirmativa”, que dessa miscelânea toda vão sair 3.390 resultados (!!!). Pois é, mesmo assim, nem Magnoli nem a Veja conseguiram citar uma só vez o “papa” da ação afirmativa, John Rawls, em seu artigo, alguém que qualquer estudante de Filosofia e de Teoria Geral do Direito conhece muito bem. Não seja por isso; para ter uma ideia básica de quem foi ele e o que ele ensinava, basta acessar este site aqui ou baixar este arquivo em .pdf, que dão uma idéia muito boa do que significam os seus trabalhos para a atual política de quotas. E ainda o subtítulo do livro de Magnoli é “História do Pensamento Racial”. Então tá!

É claro que muitas contribuições podem ser dadas no sentido de se resolver os graves problemas de desigualdade racial, social e de distribuição de renda no Brasil, mas que pelo menos as pessoas tenham o bom senso de não esconder o seu preconceito atrás de opiniões rasas e rasteiras, em seus lindos discursos de meias-verdades, apenas para manterem os seus privilégios. Para eles, é muito melhor deixar tudo do jeito que está, sem nenhuma mudança, para que continuem usufruindo de todas as benesses do achatamento e da falta de oportunidades da população pobre e negra. Ação afirmativa tem a ver com nivelamento de oportunidades, assegurar a todas as pessoas o livre acesso a todas as possibilidades de crescimento social, cultural e profissional. Nenhuma política de quotas é perfeita, nem pode ser duradoura. Deve ser constantemente reavaliada e calibrada. Permitam que o porão e o térreo possam chegar ao andar de cima.

E por falar em renda, gaste o seu dinheiro em outra coisa mais útil, portanto. Ao que tudo indica, ler o livro de Magnoli deve ser uma monumental perda de tempo.

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