“Vendo Raquel que não dava filhos a Jacó, teve inveja de sua irmã, e disse a Jacó: Dá-me filhos, senão eu morro. Então se acendeu a ira de Jacó contra Raquel, e disse: Acaso estou eu no lugar de Deus que te impediu o fruto de teu ventre?” (Gn. 30:1-2).
Por Hermes C. Fernandes
Que sentimento é mais repugnante que a inveja? Alguns a chamam de “pecado inconfessável”. É mais fácil admitir a culpa por um adultério, do que assumir que é invejoso.
Raquel teve inveja de sua irmã Lia. E por quê? Porque Lia custara a Jacó sete anos de trabalho, enquanto ela custara o dobro. Entretanto, Lia dera filhos a Jacó, enquanto Raquel era estéril. A inveja de Raquel provinha da conclusão de que ela não valera o quanto seu marido pagara por seu dote.
Cansada e desesperada, ela apelou ao seu marido, como se ele fosse o culpado. Jacó reagiu fortemente, sugerindo que ela reclamasse diretamente com Deus.
O desespero foi tamanho, que Raquel foi capaz de oferecer sua criada a Jacó, para que lhe gerasse um filho, que ela pudesse, ao menos, embalá-lo em seu colo.
Apesar de seu pedido ser fruto de um sentimento reprovável (inveja), Deus resolveu atendê-la:
“Então Deus se lembrou de Raquel, ouviu-a, abriu a sua madre e ela concebeu, e deu à luz um filho, e disse: Tirou-me Deus a minha afronta. E chamou-lhe José, dizendo: Acrescente-me o Senhor outro filho” (Gn.30:22-24).
Às vezes, Deus permite que sejamos bem sucedidos, mesmo que nossos esforços tenham uma motivação errada. Apesar de nossas motivações, Deus tem Seus propósitos!
O Apóstolo Paulo admitiu que “alguns pregam a Cristo por inveja e porfia, mas outros de boa mente” (Fp.1:15). Sua conclusão foi: “Mas que importa? Contanto que Cristo, de qualquer modo, seja anunciado” (v.18). Apesar de muitos pregarem o Evangelho por motivos escusos, podemos perceber um saldo positivo, pelo menos, em salvação de almas. Esse “saldo positivo” não significa que Deus esteja endossando tais ministérios. E sim que Deus mantém de pé a promessa de que Sua Palavra não voltaria vazia, apesar dos instrumentos serem falhos.
Raquel custou a Jacó catorze anos de trabalho gratuito para seu sogro Labão. Embora se sentisse amada, Raquel não estava satisfeita. Ela queria embalar em seus braços um filho gerado em seu próprio ventre. Não bastava ter filhos postiços, gerados no ventre de suas criadas. Ela queria um filho legítimo, fruto do amor entre ela e seu marido.
Quando finalmente ela se engravidou, nomenou seu primeiro filho de José, pois queria que o Senhor lhe acrescentasse outro filho. Em outras palavras, “José” significa “quero mais”, ou “mais um”. Ela só não imaginava o preço que teria que pagar pelo filho extra que ela pedia a Deus.
É próprio do ser humano querer sempre mais. Temos fome do infinito. Não nos contentamos em pisar no solo lunar; agora queremos caminhar em Marte. Foi esta fome insaciável que nos fez atravessar os oceanos, e colonizar até as mais inóspitas regiões do planeta. E se alguém acha que determinada realização vai conferir-lhe sensação de plenitude, está redondamente equivocado. Sempre vamos desejar mais. Seja qual for a motivação que nos norteie.
Segundo as Escrituras, “partiram de Betel e, havendo ainda pequena distância para chegar a Efrata, Raquel deu à luz um filho, cujo nascimento lhe foi a ela penoso. Tendo ela trabalho em seu parto, disse-lhe a parteira: Não temas, pois também este filho terás. Ao sair-lhe a alma (porque morreu), chamou-lhe Benoni. Mas seu pai lhe chamou Benjamim” (Gn.35:16-18).
Raquel não era marinheira de primeira viagem. Ela já havia tido a experiência antes. Mas agora algo estava diferente. Havia no ar a sensação de despedida. Já quase fora de si, Raquel ouve dos lábios da parteira que seu filho já estava às portas. Suas últimas palavras antes de render sua alma foi “Benoni”. Foi assim que Raquel chamou seu caçula.
Jacó poderia ter atendido ao último pedido de Raquel, permitindo que seu filho se chamasse Benoni. Mas Jacó sabia o peso que tinha um nome, e o estigma que ela carregaria pelo resto de sua vida. Benoni significa “filho da minha tristeza”. Imagine ser responsabilizado pela morte da mãe pelo resto de sua vida. Pior do que ser chamado de “trapaceiro” (Jacó), seria ser chamado de “tristeza de sua mãe”.
Por isso, mesmo amando desesperadamente a Raquel, Jacó preferiu ignorar o seu último lamento, pondo em seu caçula o nome de Benjamim, que quer dizer “Filho da Felicidade”, ou ainda, “Filho da minha força”.
Nosso Deus é o Senhor das circunstâncias. Não há nada que nos aconteça sem a Sua permissão. E tudo quanto Ele nos permite viver é impregnado de propósito. No entanto, Ele nos concede o privilégio de nomenar nossas experiências. Nomenar não é apenas dar nome, mas avaliar, atribuir significado a algo.
Lembre-se que Deus criou todos os animais, mas coube ao homem dar nome aos bichos.
Os hebreus sabiam a responsabilidade que era nomenar um filho, pois ele carregaria consigo uma marca indelével.
Hoje em dia, as pessoas dão nome a seus filhos inspirados nos astros da TV. Mas naquela época, os nomes tinham que expressar o significado atribuído a uma experiência. Às vezes, os pais esperavam anos até encontrar um nome que correspondesse ao caráter do filho.
Ao nomenar seu último filho de Benoni, Raquel estava expressando a tristeza que lhe tomava o coração, por saber que jamais amamentaria aquele filho tão desejado. Porém, Jacó se recusou a imprimir na criança uma marca tão repulsiva. Se ele se chamasse Benoni, ele carregaria a culpa pela morte de sua mãe por toda sua vida.
Ora, se cremos que, de fato, todas as coisas cooperam para o bem dos que amam a Deus, conforme lemos em Romanos 8:28, então temos que fazer uma leitura positiva de nossas experiências, mesmo as mais tristes.
Paulo, que era descendente de Benjamim, compreendeu tal fato. Muitos desconhecem que ele passou mais da metade de seu ministério atrás das grades. Em vez de ficar se lamentando por isso, ele preferiu dar um significado positivo a isso.
“E quero, irmãos, que saibais que as coisas que me aconteceram contribuíram para maior avanço do evangelho. De maneira que as minhas cadeias, em Cristo, se tornaram conhecidas de toda a guarda pretoriana e de todos os demais. Muitos dos irmãos no Senhor, tomando ânimo com as minhas cadeias, ousam falar a palavra mais confiadamente, sem temor” (Fp.1:12-14).
Para Paulo, suas cadeias eram “Benjamim”, e não “Benoni”.
Quanto custa gerar um “Benjamim”?
Eis o paradoxo da graça! Embora tudo quanto o Senhor faz em nossa vida seja pura gratuidade, há um preço que temos que pagar para que os Seus propósitos se cumpram em nós.
A Graça não exclui a renúncia. Pelo contrário: “A graça... nos ensina a renunciar” (Tt.2:11-12).
Uma graça que nos poupa da renúncia não é a graça oferecida por Jesus.
Gerar e dar à luz Benjamim custou a Raquel sua própria vida.
Este é o preço por querer mais... O preço por desejar fazer a vida valer à pena.
Só vale à pena viver por aquilo pelo que dispomos morrer.
O que Deus pede que renunciemos? Carros? Casas? Dinheiro? Não! Nossa própria vida! Eis o preço! E é a graça que nos capacita a pagar tão alto preço.
Temos que viver e morrer por algo maior do que nós mesmos. Algo que vá além de nossa existência terrena. Algo que continue aqui quando partirmos.
Era esse o sentimento que norteava a vida do apóstolo dos gentios:
“Mas em nada tenho a minha vida por preciosa, contanto que cumpra com alegria a minha carreira e o ministério que recebi do Senhor Jesus, para dar testemunho do evangelho da graça de Deus” (At.20:24).
Esse posicionamento perante a vida nos leva a dar um novo significado a tudo, até mesmo à morte. Por isso, Paulo diz aos Filipenses: “A minha ardente expectativa e esperança é de em nada ser confundido, mas ter muita coragem para que agora e sempre, Cristo seja engrandecido no meu corpo, quer pela vida, quer pela morte. Pois para mim o viver é Cristo, e o morrer é lucro” (Fp.1:20-21).
A morte já não nos soa com um “bicho-papão”. E sabe por quê? Porque já morremos! Já fomos crucificados com Cristo, e agora, já não somos nós, mas Cristo que vive através de nós.
Esta é a morte pela qual temos que passar para fazer a vida valer à pena. É o total desapego da própria vida, dispondo-se a abrir mão dela por um bem infinitamente maior.
Portanto, pra nós, morrer é lucro!
O que nos importa é o legado que deixaremos neste mundo, concebido e gestado a partir do momento em que abrimos mão de nossa vida.
Paulo, o mais importante dos descendentes de Benjamim, adquiriu tal consciência, e a expressa com maestria em sua epístola aos Filipenses:
“Circuncidado ao oitavo dia, da linhagem de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu de hebreus (...) o que para mim era lucro, considerei-o perda por causa de Cristo. E, na verdade, tenho também por perda todas as coisas, pela excelência do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor, por quem sofri a perda de todas estas coisas, e as considero como refugo, para que possa ganhar a Cristo” (Fp.3:5a,7-8).
Jesus disse que “se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica só. Mas se morrer, produz muito fruto. Quem ama a sua vida, perdê-la-á, mas quem odeia a sua vida neste mundo, guardá-la-á para a vida eterna” (Jo.12:24-25).
Negar-se a morrer é abraçar a solidão. É a morte do nosso ego que nos torna frutíferos.
Outra coisa que me chama a atenção nesse episódio é que Raquel entra em trabalho de parto a caminho de Efrata (Belém). E é ali, em plena jornada, que Raquel deixa esta vida para entrar na Eternidade. É ali, a caminho de Belém, que Raquel dá à luz Benjamim, filho da felicidade.
Somos o povo do caminho. E precisamos aprender que a felicidade não é encontrada no destino, mas na jornada. Então, apreciemos a paisagem!
Como aconteceu a Moisés, estamos fadados a peregrinar até chegarmos à borda da terra prometida, e então, sermos recolhidos por Deus.
Nada é mais honroso do que gestar um sonho que será desfrutado pelos que vierem depois de nós.
Somos hebreus! Um hebreu, por definição, é um caminhante, um peregrino.
Mas não caminhamos sem rumo. Não estamos perambulando pelas sendas da vida. Temos um alvo! Temos um destino! É este destino supremo que nos move pra frente.
Há alvos que são alcançados com relativa facilidade. Porém, quando estabelecemos alvos humanamente inalcançáveis, temos que estar prontos para a possibilidade de só o alcançarmos no limiar desta vida. É possível que tenhamos um vislumbre, mas não desfrutemos plenamente.
Algumas de nossas conquistas são como dar à luz José. Fica sempre a impressão de que falta algo. Alvos mais nobres são como Benjamim, e podem ser paridos quando ainda estamos a caminho. Se algo vale à pena, então, temos que estar dispostos a morrer por isso, sem nos preocupar caso não desfrutemos de nossas próprias realizações.
O texto diz: “Assim morreu Raquel, e foi sepultada no caminho de Efrata (isto é, Belém)” (Gn.35:19).
Raquel só teve tempo de contemplar de relance o filho tão desejado.
É no caminho que as grandes realizações são alcançadas inusitadamente.
Jamais devemos supor que já alcançamos o supremo propósito de nossa vida. Quando isso houver acontecido, o Senhor nos chamará.
Tal consciência é encontrada em Paulo:
“Não que já a tenha alcançado, ou que seja perfeito, mas prossigo para alcançar aquilo para o que fui alcançado por Cristo Jesus. Irmãos, não julgo que o haja alcançado. Mas uma coisa faço, e é que, esquecendo-me das coisas que para trás ficam, e avançando para as que estão diante de mim, prossigo para o alvo...” (Fp. 3:12-14a).
Ele não escreveu isso no início de sua jornada espiritual, mas já chegando ao fim dela. E ele diz que todos os que são “perfeitos” devem ter esta mesma consciência. Pode soar paradoxal, mas aos olhos de Deus somos perfeitos enquanto reconhecemos nossa imperfeição. Somos fortes, quando reconhecemos nossa fraqueza. Somos completos, quando reconhecemos nossa incompletude.
Em vez de buscarmos desenfreadamente por satisfação pessoal, estabeleçamos alvos que vão além de nós, sonhos que nos sobrevivam, que se tornem um legado para as próximas gerações.
Só uma alma pequena pensa só em si mesmo. Parafraseando o poeta, a vida só vale à pena, quando a alma não é pequena. Quando ela é capaz de entregar-se inteiramente por ideais que estejam acima de suas pretensões pessoais; quando se dispõe a qualquer sacrifício em prol de um bem infinitamente maior.
Com isso em mente, até episódios tristes de nossa vida, serão reavaliados e interpretados como “filhos da felicidade”.
Fonte: Hermes C. Fernandes
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