Por Fabio Campos
Segundo o dicionário Escolar da Língua Portuguesa, produzido pela academia brasileira de letras, “Ira” é o forte sentimento de raiva ou rancor (contra algo ou alguém), provocado por algum mal ou ofensa recebidos; ódio, cólera, fúria; trata-se do desejo de vingança ou de punição 1. O dicionário popular de teologia de Millard Erickson, diz que a “Ira de Deus”trata-se da oposição ao ódio pelo mal, juntamente com a intenção de puni-lo 2. Já o dicionário de Teologia da Editora Vida, edição de bolso, diz que Ira é a reação espontânea, subjetiva e santa de Deus ao pecado, ao mal e à impiedade exibidos pelas criaturas que a ele se opõem 3.
Este atributo não é tão fácil de definir, como acontece com amor, que também se trata de um dos atributos de Deus. Os reformadores enfatizaram muito em suas pregações e ensinos a ira de Deus. Os puritanos eram contundentes na exposição de seus sermões, e dentre os seus temas favoritos encontrava-se a ira de Deus. Quem não se lembra, por exemplo, o famoso sermão pregado por Jonathan Edwards Pecadores nas mãos de um Deus Irado.
No entanto, o principal complicador para se definir a ira de Deus é porque, na maioria das vezes, partimos do ponto da ira do homem, isto é, de nós mesmos. O que deve ficar claro para nós, entretanto, é que a ira de Deus é diferente da ira do homem, pois a ira do homem não produz a justiça de Deus (Tg 1.20). Aqui está o motivo pelo qual muitos se equivocam ao falar sobre este assunto.
Alguns entendem ira de Deus como ressentimento, animosidade, vingança pessoal etc. A nossa ira, no entanto, é que carrega este caráter. Deus, porém, não é movido por sentimentos ou paixões (ainda que Ele seja imanente). A ira de Deus, portanto, não é um sentimento de fúria no qual Deus se deixou levar pelo o momento, mas o estado na relação d’Ele com o homem (Jo 3.36; Rm 4.15; Cl 3.6). Jonh Stott diz que “a ira divina contra o pecado lhe causou dor (em Deus). Essa ira de Deus é absoluta e firme. Podemos dizer que o reconhecimento da ira de Deus é o princípio da sabedoria. Mas Deus ama as próprias pessoas com as quais está irado. De modo que a dor de Deus reflete a sua vontade de amar o objeto de sua ira”.4 Por este fator – diferente de nós quando irados – Deus continua amando o objeto da sua ira, sem, com isso, levá-la em conta, pois todos homens se encontram sob o seu juízo (Rm 3.23).
Esta ira, ou seja, me refiro ao estado, é removida quando alguém recebe Cristo como Senhor e Salvador. Aqui há algo extraordinário. Na cruz, a justiça e a misericórdia se beijaram. O Pai continuou amando o Filho mesmo quando o Filho, por amor a nós (Jo 3.16), foi o objeto da ira do Pai (Is 53. 3-7). Foi “Deus lutando com Deus”, como disse Martinho Lutero.
Ele provou o seu amor para conosco pelo fato de ter entregado a Cristo quando ainda éramos pecadores, isto é, quando éramos ainda o objeto da sua ira (Rm 5.8). Esta é a razão pela qual não precisamos levantar a voz e nem fazer cara feia ao pregarmos a ira de Deus. Risos...
O que ocorre, entretanto, é que em certas ocasiões, o que temos são manifestações desta ira (Ex 4.14; Nn 12.9, 22.22, 32.14; Jz 10.7; 2 Sm 24.1; 1 Is 42.25; At 5. 1-10). A ira consumada, no entanto, se manifestará em sua plenitude no dia do Senhor (Am 5. 18-20). Essa será a última vez que o Senhor Deus se irará. Neste dia o juízo será sem misericórdia (Mt 3.7; 1 Ts 1.10; Ap 6.16). Por enquanto, a misericórdia ainda triunfa sobre o juízo (Tg 2.13).
Com efeito, a Bíblia usa um figura de linguagem chamada“antropopatismo” (compreensão de Deus como possuidor de emoções humanas) para fazer entender, em parte (1 Co 13.9), o estado entre Deus e os homens. Em Cristo, como disse anteriormente, essa ira é removida e a paz se estabelece. Paz no sentido de uma bênção ligada ao passado. Trata-se de algo que já aconteceu. Não é a paz de Deus (Fp 4.7), mas a paz com Deus (Rm 5.1). Não é um sentimento, mas um relacionamento. É a paz da reconciliação com Deus 5.
Posto isto, o nosso cuidado consiste, ao falarmos da ira de Deus, em não atribuirmos ao Senhor a nossa ira, que é maculada pelo pecado. Para o homem apertar o gatilho não precisa de muito; basta ser contrariado. Essa ira é quem faz as pessoas cometerem erros sem que haja esforços para isso (Pr 14.17). A ira do homem o apressa em cometer loucuras (Ec 7.9); diferente da ira de Deus, que mesmo sendo santa, pura e justa, demora-se (por misericórdia) em ser aplicada (Sl 103.8).
Muitos pregadores falam da ira de Deus com ódio no coração e raiva dos pecadores. Isto não tem nada a ver com as Escrituras e nem com o caráter Santo de Deus. Jamais podemos atribuir a Deus sentimentos que são nossos, como Ele mesmo diz, acerca disto: “... porque sou Deus e não homem, o Santo no meio de ti; eu não chegarei com ira” (Os 11.9).
O que me traz temor numa pregação não é o dedo em riste do pregador ou a sua fisionomia de justiça, mas a Palavra de Deus exposta em sua fidelidade onde me é apresentado a justiça de Deus. O que me faz temer e tremer é a ira de Deus que me confronta junto do seu amor me constrange (Rm 2.4; 2 Co 5.14). Isto sim me leva ao arrependimento.
Portanto, em resumo, a ira de Deus está mundos à parte da nossa. O que provoca a nossa ira (a vaidade ferida) jamais provoca a dele; o que provoca a ira dele (o mal) raramente provoca a nossa6. O homem pode até se irar de acordo com a ira de Deus (Ef 4.26), porém, grosso modo, há uma distância muito grande entre a ira do homem para a Ira de Deus.
Em Cristo Jesus, considere este artigo e arrazoe isto em seu coração.
Soli Deo Gloria!
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Notas e citações:
1 Academia brasileira de letras; São Paulo, SP; Companhia Editora Nacional, 2º edição –São Paulo – 2008.
2 ERICKSON, Millard J. Dicionário Popular de Teologia. Ed. Mundo Cristão; 1 º edição –São Paulo – março de 2008.
3 GRENZ, Stanley J & GURETZKI, David & NORDLING, Cherith Fee. Dicionário de Teologia. Ed. Vida; São Paulo 2007.
4 STOTT, John. A cruz de Cristo. Ed. Vida Acadêmica; 1 º edição – São Paulo – março de 2006., p. 337
5 LOPES, Hernandes D. Romanos, o Evangelho segundo Paulo; p. 203
6 STOTT, John. A cruz de Cristo. Ed. Vida Acadêmica; 1 º edição – São Paulo – março de 2006, p. 176
Fonte: Fabio Campos
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