Por R. C. Sproul
A Lei de Deus é o espelho da verdadeira retidão. Quando pomos nossas obras diante deste espelho, a imagem sobre ele nos mostra nossas imperfeições. Jesus segurou este espelho diante dos olhos do jovem rico: “Sabes os mandamentos: Não adulterarás, não matarás, não furtarás...”. É importante notar aqui que os mandamentos que Jesus enumera para o jovem rico eram os que estavam incluídos na chamada segunda tábua da Lei; os mandamentos que tratam de nossas responsabilidades para com nossos semelhantes. Estes são os mandamentos concernentes ao roubo, o adultério, o assassinato, e assim sucessivamente. É notável que estavam ausentes no resumo de Jesus os primeiros mandamentos que tratam explicitamente de nossas obrigações para com Deus.
Como respondeu o jovem rico? Não se preocupou. Olhou calmamente para o espelho e não viu nenhuma imperfeição e numa forma que só pode ser descrita como presunção, respondeu: “Tudo isto tenho guardado desde a minha mocidade”.
Imaginem a arrogância ou a ignorância do homem. Tenho dificuldade de entender a paciência de Jesus. Eu não me teria contido. Naquela hora teria expressado minha indignação dizendo algo como: “O quê?! Tens guardado os dez mandamentos desde a tua juventude!? Não tens guardado nenhum dos dez mandamentos nos últimos cinco minutos. Não ouviste o sermão do monte? Não te dás conta que com facilidade te irritas com alguém, que tens violado um significado mais profundo da Lei em comparação com o roubo? Não sabes que se cobiças uma mulher quebras uma Lei mais profunda que o adultério? Nunca cobiçaste? Honras a teus pais sempre e em todos os momentos? Estás louco ou cego? No melhor dos casos, tua obediência tem sido superficial. Obedeces na superfície somente”. Assim era como eu o trataria. Não foi a maneira como Jesus o tratou. Jesus foi mais sutil, mais efetivo: “Ouvindo-o Jesus, disse-lhe:
Uma coisa ainda te falta: vende tudo o que tens, dá-os aos pobres, e terás um tesouro nos céus; depois vem, e segue-me” (Lc. 18:22).
Se alguma vez Jesus falou ironicamente, foi aqui. Se tomarmos as palavras de Jesus literalmente, estaremos forçados a concluir que a conversa teve lugar entre os dois homens mais retos da história; foi um diálogo entre o Cordeiro sem mancha e um cordeiro com uma só mancha. Eu ficaria encantado se ouvisse de Jesus que na minha perfeição moral só faltava uma coisa.
Sabemos que não é assim. Se especularmos e tratarmos de entrar nos recônditos secretos da mente de Jesus, podemos imaginar um processo de pensamento como este: “Oh! tens guardado todos os mandamentos desde a tua mocidade! Bem, vejamos. Qual é o primeiro mandamento? Oh! sim, ‘Não terás outros deuses diante de mim’. Vejamos como andas com este”.
Jesus o pôs à prova. Se havia algo na vida do jovem rico que estava acima de Deus, isso era seu dinheiro. Jesus pôs o desafio exatamente neste ponto, no ponto da obediência do homem ao mandamento número um: “Vende tudo que tens”.
Que fez o homem? Como manejou a sua única falha? Saiu triste, porque possuía muitas propriedades. O homem foi posto à prova nos dez mandamentos e fracassou depois da primeira pergunta. O objetivo desta narrativa não é estabelecer uma lei pela qual o cristão deve desfazer-se de todas suas posses. O objetivo é que nós entendamos o que é a obediência, e o que a bondade requer realmente. Jesus lhe tomou a palavra e o homem se dobrou. Quando Jesus se encontrou com outro jovem, séculos mais tarde, não teve que apresentar uma elaborada lição objetiva para ajudar o homem a entender seu pecado. Nunca disse a Lutero: “Ainda te falta uma coisa”.
Lutero sabia que lhe faltava uma multidão de coisas. Era um advogado; havia estudado a Lei do Antigo Testamento. Conhecia as exigências de um Deus puro e santo, e isto o estava enlouquecendo. O gênio de Lutero se encontrou com um dilema legal que ele não podia resolver. Parecia não haver solução possível. A pergunta que o martirizava dia e noite era “Como um Deus justo podia aceitar um homem injusto?”. Sabia que seu destino eterno dependia da resposta. Porém não podia encontrar a resposta. Mentes mais limitadas correram alegremente, desfrutando a glória da ignorância.
Estavam satisfeitos ao pensar que Deus comprometeria sua própria excelência e os deixaria entrar no céu. Além do mais, o céu não seria o lugar maravilhoso que se dizia que era se eles estavam excluídos. Duas coisas separavam Lutero do resto dos homens: primeiro, ele sabia quem era Deus; segundo, ele entendia as exigências da Lei de Deus. A menos que entendesse o evangelho, morreria em tormento.
Então ocorreu a experiência religiosa essencial de Lutero. Não houve nenhum raio, nenhum trovão. Teve lugar na quietude, na solidão de seu estudo. A chamada “experiência da torre” de Lutero mudou o curso da história do mundo. Foi uma experiência que envolveu novo entendimento de Deus, um novo entendimento de sua justiça divina. Foi um entendimento de como Deus pode ser misericordioso sem comprometer sua justiça. Foi um entendimento de como um Deus santo expressa seu santo amor:Eu anelava grandemente entender a epístola de Paulo aos Romanos e nada se interpunha no caminho exceto uma expressão, “a justiça de Deus”, porque eu a tomei em seu significado de que Deus é justo e trata com justiça o injusto. Minha situação era que, apesar de ser um monge impecável, estava diante de Deus como um pecador com a consciência perturbada, e não tinha confiança em que meu mérito podia apaziguá-lo.
Portanto, eu não amava a um Deus justo, irado, mas o odiava e murmurava contra ele. Não obstante, me agarrava ao amado Paulo e tinha um grande anelo em saber o que ele queria dizer. Refleti noite e dia até que vi a conexão entre a justiça de Deus e a afirmação de que “o justo viverá por fé”. Então compreendi que a justiça de Deus é aquela retidão pela qual, através da graça e só a graça de Deus, ele nos justifica pela fé. No momento me senti renascer e senti que havia entrado por portas abertas ao paraíso. Toda a Escritura tomou um novo significado, e, enquanto antes a “justiça de Deus” me havia enchido de ódio, agora chegou a ser para mim inexplicavelmente doce em um amor maior. Esta passagem de Paulo chegou a ser para mim a porta do céu.
Se tu tens fé verdadeira de que Cristo é teu Salvador, então no momento tens um Deus de graça, porque a fé te guia até dentro e abre o coração à vontade de Deus, para que possas ver uma graça pura e um amor transbordante. Isto é contemplar a Deus na fé, pela qual podes contemplar a Deus, olhar seu coração paternal e amigável sem ira ou falta de graça. Aquele que vê a Deus como só irado não o vê corretamente, mas só vê uma cortina como se uma nuvem obscura se houvesse caído sobre sua face.
Como Isaías, Lutero sentiu a brasa acesa sobre seus lábios. Supôs que estava se desintegrando. Foi feito em pedaços pela visão de um Deus santo. Mais tarde disse que, antes que pudesse provar o céu, Deus primeiro teve que suspendê-lo do poço do inferno. Deus não desejou deixá-lo caído no poço, mas salvou sua vida. Quando Lutero chegou a entender o evangelho, as portas do paraíso se abriram de par em par, e ele entrou.
“O justo viverá pela fé!”. Este foi o grito da batalha da Reforma Protestante. A idéia de que a justificação é só pela fé, só pelos méritos de Cristo, era tão central no evangelho, que Lutero o chamava “o artigo sobre o qual a Igreja se mantém de pé ou cai”. Lutero sabia que era o artigo
sobre o qual se manteria de pé e não cairia.
Assim que Lutero entendeu o ensino de Paulo aos Romanos, nasceu de novo, O peso de sua culpa foi quitado. O tormento enlouquecedor terminou. Isto foi tão significativo para este homem, que ele foi capaz de comparecer ante o Papa, o concílio, os príncipes e o imperador, e, se houvesse necessidade, ante o mundo inteiro. Havia passado pelas portas do paraíso, e nada o arrastaria de volta.
Lutero foi um protestante que sabia sobre o que estava protestando! Lutero foi um louco? Talvez. Porém, se era, nossa oração é que Deus envie à terra uma epidemia de tal insanidade para que nós também possamos provar da justiça que é pela fé somente.
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