sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Mapeando um Deus que não faz baganhas


Por Paulo Brabo

Falar é interpretar, escrever é ler, e todo vocabulário contém em si sua própria mitologia1. Na literatura recente e emergente de espiritualidade cristã, um dos modos mais populares de se descrever a postura divina está na idéia de que – para usar a expressão do modo como a uso sempre (por exemplo, aqui e aqui) – Deus não faz barganhas.

Quem interpreta a coisa dessa forma enxerga com dardejante clareza que, como apresentado na Bíblia (ou, pelo menos, nos evangelhos), o Deus da Bíblia (em contraposição ao mais inofensivo – e, digamos, mais pagão – Deus do cristianismo institucional) absolutamente não se dobra barganhas: não as oferece, não as estimula e, no fim das contas, não as aceita.

Esta, que eu saiba, é uma leitura muito recente do texto bíblico. Pode ter espreitado desde sempre, em regime potencial, nas páginas da Bíblia; pode ser uma leitura acurada,«Não há privilégios, não há abatimentos e não há desculpas no reino do céu.» coerente e no fim das contas muito natural, mas penso só ter sido articulada com a devida contundência em tempos recentes. Na verdade, pode ser que tenha sido apenas recentemente que a humanidade tenha adquirido as ferramentas necessárias para apreender este aspecto da revelação na inteireza de seu caráter revolucionário e desconcertante beleza. A noção de um Deus que não faz barganhas encontra muita ressonância na cínica e generosa cosmovisão pós-moderna, pois propõe ou demonstra uma divindade inclusiva e subversiva, inteiramente à margem das estruturas e sistemas usuais de poder. Fala de um Deus livre, gratuito e libertário: free as in beer, free as in freedom.

Um dos maiores campeões contemporâneos desta leitura do Deus cristão e de sua Bíblia é o insubmisso Brennan Manning, que em provocações como O Evangelho Maltrapilho propõe aos seus ouvintes um retorno radical à mais radical das idéias cristãs: a da graça pura, simples (”e sem gelo”) – aquela que não requer nada em troca e por isso abomina e exclui qualquer mecanismo de retribuição, negociação, crédito ou descrédito.

No Brasil, provavelmente ninguém trabalhou mais para divulgar esta singela revolução do que o sempre incandescente reverendo Caio Fábio. Um de seus livros mais populares,«Todos que acolhe em seu reino Deus serve da mesma forma.» escrito em 2002 mas que recupera idéias de obras anteriores, chama-se precisamente Sem barganhas com Deus. O evangelho, explica Caio Fábio, existe para denunciar e reverter a Teologia Moral de Causa e Efeito, que permanece sendo, em última análise, a teologia da igreja cristã – “uma quase-graça que, não sendo totalmente-graça, é des-graça”. E, dizendo isso, o brasileiro Caio Fábio ecoa sem ruído o norte-americano Manning: “Dito sem rodeios: a igreja evangélica dos nossos dias aceita a graça na teoria, mas nega-a na prática. Dizemos acreditar que a estrutura mais fundamental da realidade é a graça, não as obras – mas nossa vida refuta a nossa fé”.

Se digo tudo isso é para fazer uma confissão e para dar um testemunho.

A confissão é que embora endosse a idéia como se fosse minha e tenha me tornado praticamente incapaz de ler a Bíblia sem que seja através da sua lente, não cheguei por mim mesmo à noção do Deus que não faz barganhas.

O testemunho é que não foram Caio Fábio ou Brennan Mannigan que me conduziram a ela, mas – mais uma vez – a prosa lúcida do agnóstico H. G. Wells. Em outro trecho de sua Breve História do Tempo (1922), que segue ao parágrafo que citei anteriormente, Wells segue expondo sua visão sobre as impensáveis demandas do ensino de Jesus:

Os judeus estavam persuadidos de que Deus, o único Deus do mundo inteiro, era um Deus justo – mas achavam também que fosse um Deus negociador, que fizera acerca deles uma barganha com seu patriarca Abraão (uma barganha na verdade muito favorável para eles), de alçá-los por fim à supremacia sobre a terra. Com horror e ódio eles ouviram Jesus varrendo para longe essas suas acalentadas seguranças. Deus, ensinava ele, não fazia barganhas; não havia povo escolhido nem favoritos no reino do céu. Deus era o pai amoroso de toda a vida, tão incapaz de demonstrar favoritismo quanto o universal sol.

Todos os homens eram irmãos – tanto os pecadores quanto os filhos amados – desse divino pai. Na parábola do bom samaritano Jesus lança seu escárnio contra nossa tendência natural a glorificar nossa própria gente e minimizar a virtude dos povos de outros credos e raças. Na parábola dos trabalhadores ele rejeita a pretensão obstinada dos judeus de possuírem um crédito especial diante de Deus. Todos que Deus acolhe em seu reino, ensinava ele, Deus serve da mesma forma; não há distinção no seu tratamento, porque não há medida para sua liberalidade. De todos, além disso – como dá testemunho a parábola dos talentos e reforça o episódio da moeda da viúva, – ele exige o absoluto máximo. Não há privilégios, não há abatimentos e não há desculpas no reino do céu.

Porém não era apenas o patriotismo tribal dos judeus que Jesus ultrajava. Os judeus eram um povo que valorizava intensamente a lealdade familiar, e Jesus queria que a estreiteza das restritas afeições familiares fosse levada de arrasto pela grande torrente do amor de Deus. Para os seus seguidores, “família” deveria ser o reino do céu inteiro.

Jesus não se contentava ainda em investir contra o patriotismo e contra os laços de família em nome da paternidade universal de Deus e da irmandade de toda a humanidade; fica claro que seu ensino condenava também todas as gradações do sistema econômico, toda a riqueza privada e todas as vantagens pessoais. Todos os homens pertenciam ao reino; todas as suas posses pertenciam ao reino; o modo de vida íntegro para todos os homens, o único modo de vida íntegro, era o serviço de Deus com tudo que temos, com tudo que somos – pelo que, vez após outra, Jesus denunciava as riquezas privadas e as reservas de qualquer vida privada.

Finalmente, em sua tremenda profetização desse reino que consistia em todos os homens unidos em Deus, Jesus reservava pouca paciência para com a integridade de barganha da religião formal. Uma porção significativa de suas palavras registradas nos evangelhos está dirigida contra a meticulosa observância de regras por parte dos seguidores da piedosa carreira.

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