Por Robson Tavares
Um dos fenômenos mais preocupantes nos últimos tempos, dentro da igreja, diz respeito ao crescente número de pessoas feridas dentro deste ambiente. A isso denominamos de abuso espiritual. Essa onda crescente de abusos é assustadora e é causadora de sequelas que precisarão de um bom tempo para ser tratadas. Marília de Camargo César define esse abuso espiritual da seguinte forma:
O ABUSO ESPIRITUAL PODERIA SER definido como o encontro entre uma pessoa fraca e uma forte, em que a forte usa o nome de Deus para influenciar a fraca e levá-la a tomar decisões que acabam por diminuí-la física, material ou emocionalmente. (CÉSAR, 2009, p.35)
Como consequência desse tipo de abuso, observamos o aumento constante do número de pessoas que se posicionam publicamente contra a igreja. Frases de efeito e chavões se tornam cada vez mais comuns e são adotados com uma frequência cada vez maior para disseminar a suposta ideia da “inutilidade” da igreja. Mas, antes de qualquer outra coisa, precisamos estabelecer o que é igreja.
Igreja é um termo que se refere, em seu sentido bíblico, ao povo que é salvo. Portanto, essa expressão diz respeito não a uma instituição ou denominação, mas a um grupo de pessoas salvas. A isto denomina-se de Igreja Invisível. (FERNANDES, 2014, p.15)
Muitos têm ensinado que uma igreja é caracterizada como bíblica pela sua estrutura eclesiástica. Mas se existe algo que nada tem haver com o princípio bíblico de Igreja é a sua forma de governo ou a sua estrutura física. Nesse sentido Ridderbos (2004, p.371,372,377) faz a seguinte afirmação:
[...] a igreja é a continuação e o cumprimento do povo histórico de Deus que, em Abraão, Deus escolheu para si dentre todos os povos e com o qual ele se comprometeu por meio da aliança e das promessas [...] No primeiro ponto de vista, predomina o aspecto histórico-redentor da igreja e no segundo, o cristológico. Em ambos, porém, a salvação concedida em Cristo possui um caráter corporativo e é dada e recebida somente na comunhão dos que foram escolhidos e chamados por Deus para si e para o corpo único de Cristo. [...]
Pode-se perceber com facilidade que essas várias designações da igreja como “santos”, “eleitos”, “amados” e “chamados”, no que se refere também ao seu significado, estão intimamente ligadas entre si e complementam-se reciprocamente. A idéia principal de todas elas é que Deus escolheu e chamou para si um povo dentre os outros povos, assim como Abraão foi chamado de Ur e os crentes foram chamados para Deus pelo evangelho da graça divina. Como tal, eles são amados de Deus, santos, colocados ao lado de Deus e separados do mundo. Semelhantemente ao nome “igreja”, essas qualificações denotam os crentes em Cristo como a igreja do futuro grandioso, a continuidade e manifestação do verdadeiro povo de Deus no sentido histórico-redentor da palavra.
Então, parece que uma das dificuldades que enfrentamos hoje está relacionada a definição do que é a Igreja e a importância da preservação de sua identidade.
Analisemos, por exemplo, duas frases bastante comuns:
1. “VOCÊ É A IGREJA”
Não há nada mais errado do que isso, pois igreja é o conjunto de pessoas salvas, e não apenas uma única pessoa.
Essa frase tem sido utilizada exatamente para transmitir a ideia de que uma única pessoa, sozinha, pode viver um cristianismo sadio, o que não é verdade, especialmente porque um cristianismo sadio não é vivido isoladamente, mas em comunidade. Ao ensinar a orar, Jesus não disse “pai meu” e sim “pai nosso”, o que nos mostra a ideia de comunidade.
O apóstolo Paulo esclarece que os indivíduos são membros do corpo (1Co 12:12,14). Não existe um corpo formado por um único membro (1Co 12:19). E mais, todos são de igual importância (1Co 12:22-25).
2. “EU NÃO PRECISO DA IGREJA PARA SER SALVO”
No século III, Cipriano de Cartago, um dos pais latinos da Igreja[1], declarou Extra Ecclesiam nulla salus (Não há salvação fora da Igreja). A partir daí, temos o princípio da atual interpretação católica de que a salvação é proporcionada pela introdução do indivíduo à Igreja Católica Apostólica Romana. Porém, o renomado historiador, Justo González, explica o que Cipriano queria dizer com isso:
A principal razão pela qual Cipriano insistia na necessidade de regular a admissão dos traidores a comunhão da igreja era seu próprio conceito de igreja. A igreja é o corpo de Cristo, que há de participar da vitória da sua Cabeça. Por isso, “fora da igreja não ha salvação”, e “ninguém que não tenha a igreja por mãe pode ter Deus por pai”. Em seu caso, isto não queria dizer que tivesse de estar de acordo em tudo com a hierarquia da igreja – o próprio Cipriano teve disputas com a hierarquia da igreja de Roma –, mas implicava que a unidade da igreja era de suma importância. Visto que as ações dos confessores ameaçavam quebrantar essa unidade, Cipriano sentia obrigação de rejeitar essas ações e insistir que fosse um sínodo que decidisse o que se devia fazer com os caídos. (GONZÁLEZ, 2011, p.92)
O contexto de Cipriano envolvia uma disputa, uma divisão, gerada pelos confessores que buscavam instalar uma fonte de poder paralelo. Então, Cipriano busca esclarecer que a Igreja, sendo o Corpo de Cristo, deveria manter a sua unidade.
No 17º Capítulo da Confissão Helvética encontramos:
[...] como não havia salvação fora da arca de Noé, quando o mundo perecia no dilúvio, igualmente cremos que não há salvação certa e segura fora de Cristo, que se oferece para o bem dos eleitos na Igreja; e por isso ensinamos que os que querem viver não podem separar-se da Igreja de Cristo.
Esse é um dos pontos mais comuns na maioria das Confissões de Fé publicadas na história da Igreja Cristã: Somente Cristo salva. Na verdade, esse é um dos lemas da reforma Protestante: Solus Christus.
Então, se a salvação não é dada pela Igreja, mas por Cristo, ela é alimentada, fortalecida e nutrida no ambiente da Igreja, que é o Corpo de Cristo. Então, a salvação é um dom de Deus, concedido pelo Espírito Santo e que faz com que o salvo seja introduzido na Igreja.
Uma das marcas dos membros da igreja primitiva era o desejo de estar reunidos (At 1:15, 2:1, 4:31, 11:26, 12;12, 14:27, 20:7,8) em um ambiente em que pudessem compartilhar a sua fé bíblica.
O apóstolo Paulo falou claramente: “Quando vos congregais” (1Co 14:26). O autor aos Hebreus alertou: “Não deixemos de congregar-nos, como é costume de alguns” (Hb 10:25).
O nosso alerta, com tudo isso, é para que tomemos cuidado com as filosofias astutas dos desigrejados que buscam sempre incutir nas pessoas, inculcar, a ideia de que não tem importância fazer parte de uma igreja. Porém, o fato bíblico é que é no ambiente da igreja em que o povo de Deus é edificado e cresce espiritualmente.
Não podem os olhos dizer à mão: Não precisamos de ti; nem ainda a cabeça, aos pés: Não preciso de vós. Pelo contrário, os membros do corpo que parecem ser mais fracos são necessários; e os que nos parecem menos dignos no corpo, a estes damos muito maior honra; também os que em nós não são decorosos revestimos de especial honra. Mas os nossos membros nobres não têm necessidade disso. Contudo, Deus coordenou o corpo, concedendo muito mais honra àquilo que menos tinha, para que não haja divisão no corpo; pelo contrário, cooperem os membros, com igual cuidado, em favor uns dos outros. De maneira que, se um membro sofre, todos sofrem com ele; e, se um deles é honrado, com ele todos se regozijam. Ora, vós sois corpo de Cristo; e, individualmente, membros desse corpo. (1 Coríntios 12:21-27)
Participar de uma igreja faz diferença sim, especialmente porque o apóstolo do amor, João, nos disse que o amor de Deus que está em nós deve ser demonstrado na igreja (3Jo 1:5,6). Contudo, o que precisa ser observado é o tipo de igreja que escolhemos para congregar, pois, infelizmente, muitas têm se desviado do seu propósito bíblico.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CÉSAR, Marília de Camargo. Feridos em Nome de Deus. São Paulo: Mundo Cristão, 2009.
FERNANDES, Robson Tavares. A preservação da identidade da Igreja: Como a Igreja preserva a sua identidade e ensino no contexto de conflito com a cultura e a sociedade ao seu redor. 2014. 261p. Dissertação (Mestre em Teologia do Novo Testamento) – Seminário Teológico Evangélico do Betel Brasileiro, João Pessoa – PB.
GONZÁLEZ, Justo L. História Ilustrada do Cristianismo: A Era dos Mártires até a Era dos Sonhos Frustrados. São Paulo: Vida Nova, 2011.
RIDDERBOS, Herman. A Teologia do Apóstolo Paulo. São Paulo: Cultura Cristã, 2004.
SEGUNDA CONFISSÃO DE FÉ HELVÉTICA. 1562.
[1] O título “pai da igreja” é dado aos teólogos, professores e mestres cristãos mais importantes e influentes entre os séculos II e VII, cujos escritos auxiliaram no estudo doutrinário para as gerações futuras. Os estudos destes personagens é denominado de Patrística.
Fonte: NAPEC
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