terça-feira, 6 de agosto de 2013

As duas religiões cristãs



Por Maurício Zágari


Tempos atrás eu ficava muito chateado quando alguém criticava o termo “religião”. Pois eu sempre entendi “religião” como algo bom, uma comunicação com Deus, um relacionamento pessoal com o Senhor – a partir da raiz latina “religare”. Por isso eu lia ou ouvia pessoas amaldiçoando a “religião” e aquilo me incomodava profundamente. Tenho lido alguns bons livros. Tenho tido algumas experiências. E hoje posso dizer que entendo os que criticam a “religião” e não me chateio mais. Na verdade, até concordo com eles e por uma simples razão: finalmente compreendi que, em nossos dias, o termo “religião” (e seus cognatos) ganhou dois significados diferentes. O fenômeno é igual ao que ocorre com palavras como “manga”, que pode se referir a uma fruta ou a um pedaço da minha camisa; como “casa”, que pode ser a construção onde moro ou o local onde prendemos o botão da calça; como “pena”, que pode ser “dó” ou uma parte da asa de um pássaro. Sim, atualmente, a mesma palavra, “religião”, também ganhou significados bem diferentes – um positivo e outro negativo. Vamos falar sobre eles.

Primeiro o positivo. Algum tempo atrás estava conversando com um amigo e ele usou uma metáfora muito interessante. Ao falar sobre pecado e restauração, usou a imagem do fio de algum aparelho eletrodoméstico que é arrancado da tomada. Isso é pecado. Deus é a fonte de energia, a fonte de vida, a tomada. Nós somos o eletrodoméstico. Enquanto estivermos ligados a Deus, “conectados à tomada”, fluirá dele para nós a “eletricidade”, a vida, aquilo que nos permite funcionar. Assim, do mesmo modo que uma televisão precisa estar ligada à tomada para ter razão de ser, para cumprir o propósito para o qual foi criada, para termos vida nós precisamos estar ligados ao Senhor. Só assim teremos razão de ser, cumpriremos o propósito para o qual fomos criados.

Portanto, quando pecamos, é como se nosso fio fosse arrancado da tomada. Perdemos a conexão. Não estamos mais ligados ao Pai. Por isso, precisamos nos re…ligar a Deus. Isto é, nos ligar novamente à fonte de vida. Religar. Essa é a origem do termo “religião”: vem do latim religare, que se refere a essa religação. Portanto, sempre que você ouvir falar de “religião” no sentido da “religação entre o pecador e Deus”, sorria! Esse é um bom significado. Essa é a boa religião. E não deve ser criticada ou amaldiçoada. Nesse sentido, “religiosa” é somente uma pessoa que foi reconectada a Cristo. E glória ao Senhor por isso: bendita a religião, que permitiu que a graça transformasse o pecador em um religioso.

Mas existe também o sentido negativo. Aos olhos de muitos, o termo perdeu o sentido original de “religação”. E hoje entendo isso. O exemplo maior do conceito negativo de “religião” está na parábola do bom samaritano. Sei que você já leu essa passagem milhares de vezes, mas o convido uma vez mais para dar atenção a esse relato, registrado em Lucas 10:

Religião3
“[Certo intérprete da Lei] perguntou a Jesus: Quem é o meu próximo? Jesus prosseguiu, dizendo: Certo homem descia de Jerusalém para Jericó e veio a cair em mãos de salteadores, os quais, depois de tudo lhe roubarem e lhe causarem muitos ferimentos, retiraram-se, deixando-o semimorto. Casualmente, descia um sacerdote por aquele mesmo caminho e, vendo-o, passou de largo. Semelhantemente, um levita descia por aquele lugar e, vendo-o, também passou de largo. Certo samaritano, que seguia o seu caminho, passou-lhe perto e, vendo-o, compadeceu-se dele. E, chegando-se, pensou-lhe os ferimentos, aplicando-lhes óleo e vinho; e, colocando-o sobre o seu próprio animal, levou-o para uma hospedaria e tratou dele. No dia seguinte, tirou dois denários e os entregou ao hospedeiro, dizendo: Cuida deste homem, e, se alguma coisa gastares a mais, eu to indenizarei quando voltar. Qual destes três te parece ter sido o próximo do homem que caiu nas mãos dos salteadores? Respondeu-lhe o intérprete da Lei: O que usou de misericórdia para com ele. Então, lhe disse: Vai e procede tu de igual modo.”


Repare: aquele sacerdote e aquele levita (que passaram ao largo, não deram a mínima para quem estava ali, caído, e foram cuidar da própria vida) são “religiosos” – no pior sentido. Eles cumprem tudo o que a religiosidade estipula, obedecem as normas do eclesiasticismo (não procure essa palavra no dicionário, é um neologismo meu)… enfim, aos olhos dos homens aquele sacerdote e aquele levita são servos corretíssimos de Deus. Seguem a cartilha da fé ao pé da letra. Só que tem um porém: em seu coração eles não amam o próximo. Isso é o sentido negativo que o conceito de “religião” ganhou em nossos dias: é o estilo de vida de quem exteriormente é o supra sumo da espiritualidade, mas por dentro é cheio de desamor. É exatamente o que Jesus chamou de um “sepulcro caiado”. Pois Jesus define o “sepulcro caiado” como alguém que parece justo por fora mas por dentro está cheio de hipocrisia e maldade – o que, pelo meu entendimento, é resultado direto da falta de amor.


Tiago 1.27 diz: “A religião pura e sem mácula, para com o nosso Deus e Pai, é esta: visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações e a si mesmo guardar-se incontaminado do mundo”. A palavra, no original grego, traduzida aqui por “religião”, é thrēskeia, que tem exatamente o sentido do cumprimento de práticas litúrgicas, de normas e regras ditadas pela fé, de observâncias cerimoniais. O irmão de Jesus estava fazendo uma alusão direta aos fariseus e outros mestres da Lei, explicando que tudo aquilo que eles cumpriam como parte de sua religiosidade (rituais, obediência à Lei, liturgias, cumprimento de festas e sábados e tudo o mais) era inútil se eles não tivessem amor pelo próximo. E não só amor como sentimento, mas amor demonstrado de forma prática. Pois era tão importante buscar a santidade e fugir da contaminação do pecado como esforçar-se e sacrificar-se pelo bem-estar do próximo – como fruto do amor.


Religião no sentido da “religação” com Deus é algo bom, imprescindível e, mais do que tudo, é um privilegio concedido por Cristo a nós. Quando ele morreu na cruz e o véu do templo se rasgou, o que aquilo quis dizer foi: “Não há mais impedimentos, você pode se ligar diretamente ao Pai”. Por outro lado, religião no sentido de viver uma vida de práticas, cumprimento a regras e obediência aos mandamentos bíblicos mas sem demonstração de amor ao próximo é o que há de mais nefasto. Os samaritanos não faziam nada do que os sacerdotes judeus faziam em termos litúrgicos, mas foi precisamente o gesto de amor do samaritano pelo próximo que lhe rendeu elogios de Cristo. Não foi ter ido ao culto, evangelizado, louvado da forma “certa”, pregado um bom sermão, seguido as liturgias e datas santas…nada disso. Fazer essas coisas é ótimo – e devemos fazer – mas não foi isso o que fez Jesus destacar a atitude do samaritano. O sacerdote cumpria a cartilha da fé ao pé da letra, mas deixou o próximo pra lá e foi cuidar da própria vida e tratar dos próprios interesses. E esse, aos olhos de Jesus, é “raça de víboras”.

Os elogios de Jesus foram pelo amor demonstrado ao próximo.

Que Deus nos livre de nos tornarmos “religiosos” no mau sentido. Se cumprirmos tudo o que a cartilha do crente determina mas nosso coração não tiver amor pelo próximo… estamos mal na fita. Peço ao Senhor que nos amemos uns aos outros de fato. Que haja mais pregações sobre isso. Que se cante mais sobre isso. É simples, não exige grandes teologias: amar o próximo é fazer por ele o que gostaríamos que fizessem a nós. Uma criança entende o conceito.

Deus queira que nunca aconteça com você. Mas, se um dia ocorrer de você estar caído, ferido, à beira da estrada, peça ao Senhor que passe por ali o religioso que foi religado a Deus e não o religioso que só cumpre os eclesiasticismos. Senão, meu irmão, minha irmã, você ficará jogado às traças, à chuva e ao desamor de gente que diz amar a Deus mas deixa você caído à beira do caminho, implorando por socorro.

Mais do que isso: que o religioso que deixa os outros largados para lá nunca sejamos você e eu. Pois, se formos assim… que Deus tenha misericórdia de nós.

Paz a todos vocês que estão em Cristo,
Mauricio

Fonte: Apenas

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